É comum ouvirmos a expressão “é só um melodrama” para desqualificar ou diminuir um filme que tenha aspectos ou mesmo feição melodramática. Como se fosse fácil realizar uma obra dentro desse registro dos sentimentos.

 

Acontece que, num melodrama contido como “A filha do palhaço”, qualquer escolha errada, seja no tempo dos cortes, na divisão das cenas, na interpretação de todo o elenco ou mesmo no uso da música, pode afundar o filme, abalar suas estruturas, tornando-o menos apreciável, até insuportável no sentimentalismo.

 

 



 

 

A faixa do melodrama é estreita. Chegar nela requer a habilidade de contenção que poucos diretores dominam. O risco de passar dessa faixa e cair no dramalhão, no chorume, no piegas, é muito grande, e talvez por isso muitos evitam percorrer a estrada florida e secreta que leva ao melodrama.

 

 

 

 

Felizmente, Pedro Diógenes não teve medo. Na história do reencontro de pai e filha, agora adolescente, após muitos anos de separação, o diretor cearense acerta o tom e a intensidade das emoções.

 


Domínio surpreendente para um cineasta ainda jovem, que há poucos anos não resistia em quebrar as bases da narrativa tradicional para não encará-la de frente.

 


Aqui ele consegue evitar o sentimentalismo excessivo, abrindo as portas para cenas mais dramáticas quando elas se fazem necessárias, e abraçando a contenção nos momentos em que é preciso pisar no freio das emoções.

 


Escudado pelo diretor de fotografia Victor de Melo e pelo montador Victor Costa Lopes, Diógenes é muito feliz nos posicionamentos de câmera, nos tempos de corte, nas distâncias trabalhadas nos enquadramentos. Vai bem até na manjada cena do disco, que mostra de onde veio o nome da filha.

 

 


A trama já começa com um problema a ser resolvido. Joanna, interpretada por Lis Sutter, espera o reencontro com seu pai, Renato, vivido por Démick Lopes, enquanto assiste ao show de humor que ele faz no palco, vivendo personagem espalhafatosa e sem papas na língua.

 


Silvanelly, essa personagem, é inspirada em Raimundinha, interpretada durante cerca de 30 anos por Paulo Diógenes, primo do cineasta, morto em fevereiro de 2024 em razão de complicações pulmonares, aos 62 anos.

 


O pai sente a ansiedade do reencontro depois de tanto tempo, enquanto se desmonta no camarim. Não será fácil, porque há muito ressentimento do lado dela, vergonha e remorso da parte dele, que deixou esposa e filha para viver um romance com outro homem, agora morto.


Segunda chance

 

Remorso e vergonha não pelo caso de amor homossexual, mas por não ter tido coragem de se reaproximar da filha depois da separação. Ele tem, então, sua segunda chance.

 


Aos poucos, Renato começa a se sensibilizar com os traumas amorosos da filha, e Joanna passa a não aceitar mais que idiotas ofendam seu pai durante um show num boteco. Que o idiota esteja vestindo camisa do Ceará só pode ser provocação de um torcedor do Fortaleza.

 


São muito belos esses momentos de amor e carinho entre pai e filha. É como se o cinema de Ozu fosse transformado pelo estilo de John Cassavetes, numa cor total e orgulhosamente brasileira.
E é difícil resistir ao choro no belíssimo final, um dos mais marcantes do cinema brasileiro recente.

 

 

Diógenes já havia mostrado talento em filmes passados, seja os que assinou com o coletivo Alumbramento, na companhia de Guto Parente e os irmãos Luiz e Ricardo Pretti, seja o que realizou em dupla com Parente ou sozinho.

 

O coletivo deixou parte da plateia e da crítica extasiadas na Mostra de Tiradentes de 2008, com “Estrada para Ythaca”. Se não fizeram melhor nos filmes seguintes, também não deixaram a chama se apagar.

 

“Inferninho”, de 2018, realizado por Diógenes e Parente, mostrava finalmente a evolução dos diretores dentro do cinema dito autoral brasileiro.

 

 

“Pajeú”, de 2020, foi o batismo solo de Diógenes em longas, e já mostrava um diretor seguro, preparado para dar o salto que Adirley Queirós e Guto Parente haviam dado poucos anos antes com, respectivamente, “Era uma vez Brasília”, de 2017, e “O Clube dos Canibais”, de 2018.

 

Esse salto, finalmente, chega com “A filha do palhaço”, coroando mais uma vez a boa geração de jovens cineastas brasileiros cujas carreiras começaram ou se firmaram no século 21. (Sérgio Alpendre)

 


“A FILHA DO PALHAÇO”


Brasil, 2022. Direção de Pedro Diógenes. Com Démick Lopes, Lis Sutter e Jesuíta Barbosa. Em cartaz na Sala 2 do UNA Cine Belas Artes, às 20h20; e na Sala 1 do Espaço Cultural Unimed-BH Minas, às 16h.

compartilhe