Na visão de Jesuíta Barbosa, Ney Matogrosso encarna vários animais. “Acho que tem um pássaro como primeira figura de possessão, a liberdade e o olhar altivo, de cima”, diz o ator. “Mas é como aquelas figuras gregas, que têm pernas de cavalo da cintura para baixo. É uma mistura.”
Barbosa está no camarim do auditório do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o Masp, minutos antes de subir ao palco na pele do cantor retratado na cinebiografia “Homem com H”, ainda sem data de lançamento.
A cena traz o ator em performance de “Homem de Neanderthal” – sem camisa, com crina de cavalo e penas de aves –, a primeira música do primeiro álbum de Ney depois de deixar os Secos & Molhados, em 1975.
Esta cena, uma explosão de expressividade do corpo e do som, representa bem o que o roteirista e diretor Esmir Filho quer de seu filme: uma obra sobre a liberdade.
Recorte emocional
Não há construção cronológica da vida de Ney, mas diversas situações em épocas diferentes em que ele atravessou desafios que tentaram reprimi-lo. “É um recorte emocional”, afirma o diretor. “Todas as cenas do filme têm a ver com isso.”
Têm a ver também com a relação de Ney com o pai sargento – a primeira e mais importante figura de autoridade em sua vida. A cena de “Homem de Neanderthal” e a performance animalesca do cantor vivido por Jesuíta Barbosa representam também um choque emocional, pois foi a primeira vez em que o sargento Matogrosso viu o filho no palco. Justamente em seu show mais afrontoso.
Barbosa diz que o Ney desta cena é agressivo num ambiente hostil de ditadura militar. Até então, o casal Antonio – pai do cantor, vivido por Rômulo Braga – e Beita – a mãe, papel de Hermila Guedes – só tinha visto o filho cantar na televisão.
O pai, diz Braga, representa a repressão. “Tem formação militar, foi para a Segunda Guerra Mundial, vem de uma família de posses ruralistas. Tem todo um contexto histórico. Ele é conservador de fato e não deixa de ser.”
Já a mãe, diz Hermila Guedes, teve participação na descoberta da arte pelo filho e sempre torceu por ele. “A Beita influencia nessa liberdade”, afirma. “Ela tem posições firmes, é uma mulher de atitude. Nunca abaixou a cabeça para o marido, e o Ney teve essa referência em casa.”
Toda a construção do roteiro foi acompanhada por Ney. Esmir Filho teve encontros e trocou mensagens com o cantor. Quis saber sobre como ele se sentiu em situações da vida.
O cineasta diz que Ney não impôs restrições à narrativa, só pediu que se tomasse cuidado com a representação de outras pessoas.
O filme acompanha o cantor desde a infância até meados dos anos 1990, depois da morte do pai e da epidemia de Aids. Tudo é entremeado e pautado por performances no palco. Jesuíta Barbosa encarna Ney usando todo o corpo.
“Eu, criança, pensando em Ney Matogrosso, via alguém que quebra qualquer possibilidade de julgamento”, conta o ator. “Você pode falar da sexualidade, da música, mas vai além disso. Você pensa nele e ele já atravessou você.”
O Ney Matogrosso do filme é um espelho do cantor, explica Jesuíta. “Ainda que seja cinebiografia, é ficção. Temos que ter liberdade. O respeito que ele tem com a arte dele é o que a gente tem de trazer no filme, sempre olhando para essa figura como referência. Essa integridade, para mim, é o mais interessante. E, claro, ao mesmo tempo ele é subversivo. Então, a gente aqui também subverte, assim como ele faz no trabalho dele.” (Lucas Breda)