Viet Thanh Nguyen, escritor nascido no Vietnã, afirma que o colonialismo o tornou "um homem de duas caras"
 -  (crédito: Martin BUREAU/AFP)

Viet Thanh Nguyen, escritor nascido no Vietnã, afirma que o colonialismo o tornou "um homem de duas caras"

crédito: Martin BUREAU/AFP

 

Carolina Azevedo

 

Em sua memória mais antiga, Viet Thanh Nguyen se vê aos 4 anos de idade chorando enquanto é arrancado dos braços de sua mãe em um campo de refugiados na Pensilvânia, nos Estados Unidos.

 


Recém-chegado do Vietnã, em 1975, ele foi separado de seus pais e de seu irmão de 10 anos para morar temporariamente com uma família americana. A memória deixou cicatrizes no autor, mesmo que tenha se reunido com os pais pouco depois.

 

 

 


Nguyen vem usando a escrita para entender o trauma de crescer como "um homem de duas caras", como descreve a experiência típica de refugiados. "A sensação é de que eu era um americano espionando vietnamitas e um vietnamita espionando americanos, dependendo de onde estivesse", diz o escritor, em entrevista por vídeo.

 


A experiência de se sentir como um espião é tomada por Nguyen ao pé da letra no romance premiado "O simpatizante" (vencedor do prêmio Pulitzer), cuja sequência, "O comprometido", acaba de ser lançada no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Cássio de Arantes Leite. Além disso, o primeiro livro ganhou, em abril, uma adaptação em formato de série no canal de streaming Max.

 


Construídos como relato de um agente secreto sem nome, os livros funcionam ora como thriller, ora como metáfora para pensar como países capitalistas produzem a imagem de uma crise de refugiados sem assumir que a existência de fluxos de migração seja fruto de suas próprias políticas.

 


Acompanhando a fuga de um espião vietcongue em direção à Los Angeles da década de 1970, onde ele é infiltrado entre ex-combatentes do Exército sul-vietnamita, o primeiro livro explora as dualidades de um refugiado dividido entre o mundo capitalista e o comunista.

 

 

 

 

No segundo livro, aterrissando em Paris, o personagem se vê perdido no espectro político, duvidando de suas convicções ao se notar seduzido pelo lucro do tráfico de drogas.

 

Vietnã, Gaza e Paris

 

Para o autor, a Guerra do Vietnã é o cenário perfeito para uma história que passou longe das narrativas construídas por Hollywood, escancarando as fundações de uma nação baseada não em democracia, segundo ele, mas em guerra, colonização, escravidão e genocídio. "Todos os países gostam de pensar que suas guerras são únicas, mas elas fazem parte de histórias muito mais longas de guerras que vieram antes e depois."

 

O autor insiste que, escrito quando os Estados Unidos travavam conflitos com Iraque e Afeganistão, "O simpatizante" ainda segue relevante, "à medida que pensamos sobre o apoio americano ao genocídio de Israel em Gaza".

 

Similarmente, "O comprometido", leva o narrador a Paris para investigar as continuidades da colonização francesa. O racismo contra asiáticos e árabes, em sua maioria refugiados de políticas coloniais, perpassa uma narrativa que não se localiza na França branca da nouvelle vague, mas em uma Paris de imigrantes.

 


"Nenhuma das contradições sobre a sociedade francesa do início da década de 1980 desapareceu", diz o autor, lembrando a revolta em curso na Nova Caledônia, território ultramarino francês.

 


Estereótipo no cinema

 

Também foi o conflito no Vietnã um dos mais amplamente registrados por aquilo que o narrador chama de "lançador de mísseis balísticos intercontinentais de americanização" – o cinema americano.

 


Ironizando a representação de povos colonizados em Hollywood, Nguyen lembra que, mesmo em filmes notoriamente antiguerra como "Apocalypse now", de Francis Ford Coppola, quem não é americano é reduzido a um estereótipo mudo.

 

 

Segundo o autor, não possuir os meios de representação é um tipo de morte, pois, "se formos representados por outros, será que eles não podem, um dia, pegar a mangueira e lavar nossas mortes do piso laminado?"

 

 

É contraditório – e, por que não, satisfatório – ver aquela mesma Hollywood gastando milhões com uma adaptação do primeiro livro de Nguyen.

 


A série "O simpatizante" é dirigida pelo coreano Park Chan-wook – com realização de um episódio por Fernando Meirelles –, com Robert Downey Jr. no papel de diversos antagonistas americaníssimos, além do australiano de origem vietnamita Hoa Xuande no papel do protagonista.

 

Leia mais: Fernando Meirelles fala sobre a série "O simpatizante"

 

 

"Também é uma contradição que eu tenha crescido com a língua inglesa e a usei para satirizar os Estados Unidos, seus absurdos e hipocrisias. Para aqueles criados dentro do império, é quase impossível não usar suas ferramentas para criticá-lo. Há sempre um confronto com essa contradição ao longo do meu trabalho", diz o autor.

 

Terceiro livro vem aí

 


Para o autor, a linguagem molda como entendemos a realidade. Se Nguyen se tornou americano através do inglês, é com ele que se rebela contra sua própria colonização.

 


Sua rebeldia promete continuar no terceiro e último livro da saga de "O simpatizante", em que o narrador deve voltar aos Estados Unidos na segunda metade da década de 1980. Entusiasmado em retratar o momento de sua adolescência no livro, Nguyen é cauteloso em localizar a próxima narrativa entre a febre de "Star Wars" e o governo de Ronald Reagan, sem estragar a surpresa das missões finais de seu protagonista.

 


“O COMPROMETIDO”


• De Viet Thanh Nguyen
• Tradução: Cássio de Arantes Leite
• 360 páginas
• Editora Alfaguara
• Preço: R$ 119,90 e R$ 49,90 (e-book)