Emerson Maia se inspirou na escrita disruptiva do português José Saramago -  (crédito: Arquivo pessoal)

Emerson Maia se inspirou na escrita disruptiva do português José Saramago

crédito: Arquivo pessoal

 

 

“Tereza passava dos oitenta e tinha Alzheimer em estágio avançado. Já não reconhecia mais ninguém. Pensava que o armário do quarto era a privada e nele costumava fazer suas necessidades. Se esquecia de que havia acabado de comer e praguejava os filhos, genros e noras por quererem matá-la de fome. Num ano ido, saiu de casa na calada da noite, procurando ir até a Praça Floriano Peixoto, onde conhecera o marido militar. As buscas foram em vão. Foi encontrada pela neta quinze anos mais tarde, a cabeça mergulhada em formol no museu de morfologia da Faculdade de Medicina”.

 


Este trecho de “Os corpos nus dos moribundos”, do mineiro Emerson Maia, dá indícios sobre o que aborda este romance de estreia do escritor, de 30 anos: questões familiares, jornada rumo ao desconhecido, paixões avassaladoras, abandono e algum tipo de busca por redenção.

 

 

 


Poderia ser apenas mais do mesmo. Contudo, “Os corpos nus dos moribundos”, que será lançado neste sábado (29/6), às 19h, na Livraria do Belas, se destaca por trazer tais dilemas junto de aspectos de Minas Gerais e da alma de seu povo.

 


Escrito de maneira fragmentada, o livro tem no centro da narrativa a história de diferentes gerações da família Sanim. Essa linhagem fictícia começou no sertão mineiro, mas, com o passar dos anos, espalhou-se pelo estado.


“Contos-capítulos”

 

O conjunto de 11 capítulos – cada um como se fosse conto – traz pessoas completamente distintas umas das outras, com seus costumes e crenças. “Os textos carregam muitas vozes de personagens que, em muitas situações, não se encontram, não se cruzam. Mas eles carregam em si elementos em comum, de forma que, juntos, fortalecem a história única”, destaca Maia.

 


É difícil não traçar paralelos com “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez. Assim como os Buendía, os Sanim não terão “uma segunda oportunidade sobre a Terra”.

 


Maia, no entanto, não recorre ao realismo fantástico. Pelo contrário. Ele se pauta pela realidade, muitas vezes cruel, do cotidiano de famílias pobres de pequenas vilas e arraiais. Com maestria e sensibilidade, deixa o leitor a par “das várias Minas que fazem o estado de Minas Gerais”, conforme diz.

 


Isto está posto de diversas maneiras (positivas ou negativas). Seja na influência da religião católica – em muitas comunidades, o que o padre fala vale mais do que a lei – ou no machismo escancarado do pai que renega a filha pois queria neto homem.

 


Cada personagem, mesmo aquele que vive na capital, carrega aspectos do provincianismo mineiro. E, a depender da circunstância, reforça ou desconstrói tradições.


Guerra do tráfico

 

Ecoando João Guimarães Rosa, Maia faz um retrato contundente do sertão mineiro, jogando luz sobre problemas incorporados às grandes cidades. A guerra do tráfico, que mata o Sanim adolescente que nunca se envolveu com a criminalidade, não seria adaptação das disputas de jagunços por território?

 


“Queria trazer o máximo de semelhança possível com a realidade, mas sempre respeitando o trabalho de ficção. Porque a literatura não é realidade, ela é a transmutação da realidade”, diz o autor.

 


A transmutação não ocorre apenas no enredo. A construção narrativa de Maia é disruptiva, propondo uma espécie de pas de deux entre prosa e verso. Não é como se um fosse incorporado ao outro. Evidencia-se a estranha – embora assertiva – sugestão de diálogo entre as duas estruturas, que se alternam ao contar uma história.

 


“Devo muito isso ao Saramago”, revela o escritor estreante. “Ele me ensinou a ser disruptivo na construção do texto, a romper com a forma tradicional da escrita.”

 

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Emerson Maia começou a escrever o romance durante a pandemia. Em 2022, recebeu o Prêmio Literário Fernanda Botelho, em Portugal, pelo conto “João Batista”, incorporado a “Os corpos nus dos moribundos” como um capítulo. A premiação o incentivou a lançar em forma de romance as histórias que estavam engavetadas.

 


A maior dificuldade foi encontrar editora. O livro só está saindo pela Acaso Cultural porque Maia venceu concurso promovido pela casa editorial carioca. Mesmo assim, depois de levantar recursos por meio de financiamento coletivo.

 


Com a publicação, o autor não se sente mais um neófito. “Ainda não tenho outro livro pronto, mas já percebo que é possível me enxergar como escritor e publicar minhas histórias”, conclui.

 

 

“OS CORPOS NUS DOS MORIBUNDOS”


• De Emerson Maia
• Acaso Cultural
• 162 páginas
• R$ 59,90
• Lançamento neste sábado (29/6), às 19h, na Livraria do Belas (Rua Gonçalves Dias, 1.581, Bairro de Lourdes)