Nonada não é só a primeira palavra de “Grande sertão: Veredas” (1956). É também o mais conhecido neologismo apresentado por Guimarães Rosa (1908-1967) em sua obra-prima. Apareceu uma meia dúzia de vezes no romance, multiplicou-se fora dele – hoje, dá nome a galeria de arte, revista literária, hotel. Uma realização e tanto para uma palavra de três sílabas, “não é nada”, grosso modo.

 




O texto rosiano foi o “grande inspirador” para que Guel Arraes e Jorge Furtado embarcassem em uma adaptação da saga narrada por Riobaldo, um dos personagens mais fascinantes da literatura brasileira. “Esse livro é infinito, tem várias portas de entrada. Mas, desde o início, sabíamos que não poderíamos mexer com a prosódia”, diz Arraes.

 


Com estreia nesta quinta (6/6) nos cinemas, “Grande Sertão” tem ao menos 90% de sua história vinda da obra de Guimarães Rosa, contabiliza Arraes. “Mas, às vezes, o texto vem de outro contexto. Foi feita uma grande colagem”, afirma. A própria nonada está lá. O espectador mais atento vai encontrá-la não no início, e somente uma vez. “Entrou aos 45 do segundo tempo”, brinca Arraes.

 

Fidelidade aos temas


No filme, a fidelidade é grande aos temas tratados por Guimarães Rosa. Descobrimos a história da vida de Riobaldo contada por ele, já velho. Como virou jagunço, como conheceu e reencontrou Diadorim, como detestava Hermógenes, como viu Diadorim morrer e descobriu que seu companheiro era uma mulher. Seu embate existencial entre o bem e o mal, Deus e o diabo.

 

 

Mas o cenário é outro. Grande Sertão é o nome de um aglomerado na periferia do Brasil. Não é hoje, mas num futuro que pode estar logo ali. Em cena, policiais e bandidos travam uma guerra urbana em que os limites entre o bom e o ruim, o certo e o errado, são sempre borrados.

 


Riobaldo (Caio Blat) é um professor que entra para o bando de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) por amor a um de seus mais corajosos integrantes, Diadorim (Luisa Arraes). Detesta, desde sempre, o maléfico Hermógenes (Eduardo Sterblitch) e admira Zé Bebelo (Luis Miranda), ainda que este seja um coronel da polícia que tenha aspirações políticas. A partir da guerra urbana, tais relações vão ficar mais complexas.

 


Uma das mais fiéis e prolíficas parcerias do audiovisual brasileiro, Guel Arraes e Jorge Furtado assinaram o roteiro a quatro mãos. “Temos um método nosso. E quando dividimos os diálogos, é metade/metade mesmo. Tudo é passado pela mão do outro”, comenta Guel, que chegou ao projeto por meio de Heitor Dhalia, que tinha os direitos de adaptação.

 


“Tinha vontade (de adaptar) desde sempre, mas nove entre 10 diretores são intimidados (pela grandeza do livro). Levei um mês pensando com o Jorge como poderíamos fazer”, conta Guel. Fazer uma analogia com uma guerra urbana foi a decisão que a dupla tomou logo no início. “A ideia era ver como as palavras caberiam dentro de um cenário enorme, que funciona quase como uma coisa meio operística.”

 


Mistura temporal

Ficou claro também no começo do projeto que o filme não seria realista. “Não é um filme naturalista. Aliás, é o contrário disso. Não é um conceito futurista, mas é um lugar onde a guerra existe há muitos anos e que vai chegar uma hora em que tudo fica incontrolável. São coisas possíveis de acontecer hoje, como a construção de um muro gigante, mas também traz coisas que já aconteceram há 30 anos. É uma mistura de vários tempos.”

 


As filmagens ocorreram tanto em estúdio quanto em uma comunidade no Rio de Janeiro. “Mas muito modificada. Queria ter aquilo como uma base, para que não ficasse tudo em digital.” O filme abre com uma panorâmica que mostra esse aglomerado chamado Grande Sertão. Tal cenário foi construído digitalmente.

 


O próprio desenho dos personagens seguiu essa premissa. Zé Bebelo tem um exército que funciona como uma massa. “Já os guerreiros têm personalidade, um pensamento mais complexo. Hermógenes é um arquétipo, como um diabo pop, com a calça cheia de sangue.”

 


Houve longas conversas entre os roteiristas para ver como se daria a relação entre Riobaldo e Diadorim que fizesse sentido hoje. “Considerando um bando de bandidos (que é onde os dois personagens se encontram no filme), o meio é mais machista, não é tão avançado (hoje). Por isto achamos que deveríamos dar voz a Diadorim, que no roteiro foi mais desenvolvido. (No livro) É um personagem mítico, tem poucas páginas, é quase como uma neblina.”

Clássico "difícil"


Guel Arraes é um leitor de Guimarães Rosa desde a adolescência. Mas só conseguiu ler “Grande sertão: Veredas” quando adulto. “Parei duas, três vezes e só depois engatei. Não é um caminho clássico, nunca entendi porque não conseguia travessar’ ‘Grande sertão’.”

 


Adaptar um clássico que é considerado “difícil” para o grande público foi uma questão complexa. “É um filme que procura uma comunicação, sim, ainda mais pensando futuramente em TV. Houve coisas intencionais. No livro, por exemplo, até a página 80 o que existem são as lembranças desconexas do Riobaldo. Colocamos tudo na ordem cronológica. Queremos que quem veja entenda, além do mais, porque sei que 99% das pessoas (que forem ver o filme) não leram o livro. E o cinema não volta atrás”, conclui.

 

 


“GRANDE SERTÃO”
(Brasil, 2023, 108min.). Direção: Guel Arraes, com Caio Blat, Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi, Luis Miranda. O filme estreia nesta quinta-feira (6/6), nos cines BH 9, às 13h, 15h50, 18h40 e 21h20 (exceto dom) e 12h, 14h50, 17h40, 20h20 (somente dom); Big 3, às 20h15; Cidade 8, às 16h10 e 20h55; Contagem 7, às 16h10 e 18h40; Del Rey 4, às 13h40 e 18h25; Monte Carmo 7, às 14h, 16h20 (exceto sáb), 18h45 e 21h; Norte 4, às 20h15; Pátio 2, às 12h15 (somente sab), 14h50, 18h e 20h40 (exceto dom) e 11h10, 13h50, 17h e 19h40 (somente dom); UNA Cine Belas Artes 1, às 16h10 e 20h30.

compartilhe