Para demonstrar a sua inquietação criativa, João Carlos Martins, de 83 anos, passeia pelos cômodos de seu apartamento, em São Paulo. Recolhido em seu quarto, ele faz exercícios, durante oito horas por dia, num piano mudo que pertenceu a Guiomar Novaes. Na sala de estar, o maestro e pianista troca o silêncio pelo som, tocando o "Prelúdio nº 1" do "Cravo bem temperado", de Bach.

 




Ele explica como usa o pedal naquela peça, tentando mimetizar a acústica das igrejas antigas e mostra uma carta em que o pai do canadense Glenn Gould, o maior intérprete de Bach do século 20, reconhece a admiração de seu filho pelo artista brasileiro. Martins une as suas novidades às memórias.

 


Ao modo da música barroca, ele sintetiza as temporalidades, lançando agora a sua nova biografia, "O indomável", escrita pelo jornalista Jamil Chade, um ano antes de se aposentar como regente e construir um futuro dedicado à educação musical.

 


"Tenho noção de que estou me aproximando do apagar das luzes, então é hora de mostrar para as gerações mais novas os erros e os acertos", diz ele. "Com uma condição. Os erros você procura corrigir, e os acertos, aprimorar. Então, esse livro foi um ato de coragem da minha parte."

 


Com a aposentadoria, ele busca ter mais tempo livre, sem os compromissos de sua orquestra, a Bachiana Filarmônica. Sua trajetória já foi repassada por alguns filmes e livros. De toda sorte, Chade não se limitou a contar como o seu biografado perdeu, numa sucessão de incidentes, o movimento das mãos, conseguindo superar todos os problemas de saúde.

 


Especialista em política internacional, o autor fez um trabalho distinto por contextualizar a importância do pianista na geopolítica da década de 1960. Nas primeiras páginas, Martins aparece em Havana, para onde foi, num ato de rebeldia, se apresentar antes de desembarcar nos Estados Unidos, o maior mercado da música de concerto daquela época.

 


Era a Guerra Fria e, a qualquer momento, a capital cubana poderia ser invadida pelo exército americano. Por isso, o artista precisou fugir de lá, não sem antes ter o próprio talento explorado por Raúl Castro, que assistiu ao concerto, e pelo governo brasileiro.

 


Naqueles anos, Jânio Quadros implementara a Política Externa Independente, restabelecendo as relações com os países sob influência soviética. "Sem querer, Martins foi um embaixador formidável para o Jânio", diz Chade, mencionando a diplomacia exercida pela música de concerto ainda hoje. "As orquestras construíram a superioridade do Ocidente no século passado. Não basta conquistar territórios. É preciso convencer, e a música seduz." 


Mudança para os EUA

 

Fenômeno popular nos Estados Unidos, para onde se mudou aos 23 anos, Martins aparece, adiante no livro, como áulico do poder nos bastidores da política americana. Entre um concerto no Carnegie Hall e outro no Lincoln Center, ele se hospedava na casa da filha do líder democrata no Congresso, era elogiado por gente como Martin Luther King e tinha encontros com o pintor Salvador Dalí.

 


É verdade que Martins se acostumara, desde cedo, a frequentar o "grand monde". Seu pai era um empresário de sucesso e chegava a pagar pela publicação de artigos nos jornais para rebater as críticas negativas recebidas pelo filho.

 


Ainda aluno de Joseph Kliass, ele mostrou toda a sua ousadia ao tocar uma peça de Heitor Villa-Lobos, diante do compositor modernista, modificando a dinâmica musical. Em comum, os dois artistas brasileiros encontraram a inspiração em Bach.

 


Em alguns momentos, as dores nas mãos o afastaram de seu piano. Ocorre que a proximidade com o poder maculou a biografia do artista. Nos anos 1970, ele se tornou diretor da Turismo União, braço do Banco União Comercial. Duas décadas depois, foi secretário de Cultura de São Paulo, no governo de José Maria Marin, e participou de um esquema de corrupção na campanha de Paulo Maluf, do extinto PPB, ao governo estadual.

 


Sua empresa, a PauBrasil, foi usada como laranja na campanha. Ao todo, essa firma arrecadou US$ 19 milhões, num esquema de enriquecimento ilícito. "Eu me arrependo. Errei. Sei que, até o dia da minha morte, esse cadaverzinho vai estar enterrado aqui no meu peito. Hoje, eu ainda acordo à noite de repente com as mãos suadas", diz, acariciando Sebastian, seu cãozinho.

 

Sem censura


Amplamente noticiado na imprensa, o tema, afirma Chade, foi retomado sem censuras na biografia. Em 2009, o músico foi condenado pela Justiça por crime contra a ordem tributária.

 


O pianista, no entanto, não dá declarações políticas há mais de duas décadas. Sua biografia tampouco trata das críticas mais recentes a esse complexo personagem da vida cultural brasileira.
Nos últimos anos, o maestro conciliou a agenda de concertos com idas a programas de TV, onde contava sua história de superação, regendo um pot-pourri de hits da música de concerto. Foi uma estratégia que, na visão dos críticos, não democratiza o repertório e só aumenta a popularidade do maestro. (Gustavo Zeitel)


DEBATE EM BH

Jamil Chade, o autor de “O indomável: João Carlos Martins entre som e silêncio” participa nesta quinta-feira (6/6) do projeto Sempre um Papo, em Belo Horizonte. O encontro aberto ao público, com ingressos disponíveis para retirada no site Sympla, está previsto para as 19h30, no Teatro José Aparecido de Oliveira (Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais – Praça da Liberdade, 21).


“O INDOMÁVEL: JOÃO CARLOS MARTINS ENTRE SOM E SILÊNCIO”
• Jamil Chade
• Editora Record (196 págs.)
• R$ 59,90 e R$ 39,90 (ebook)

compartilhe