Em 5 de novembro de 1817, desembarcou na Baía de Guanabara, vindo da Áustria, a futura princesa do Brasil, Maria Leopoldina. Em sua comitiva – cujas fragatas continuaram chegando dias depois –, além das damas de companhia, membros do clero, médicos e habituais parasitas que frequentavam a corte, havia um ambicioso naturalista chamado Johann Natterer.
Natterer veio para o Brasil com a ideia de ascender socialmente. Apaixonou-se pelo país, casou-se com uma indígena e deixou de lado sua vaidade. Voltou para a Áustria 18 anos depois, contrariando o plano inicial de ficar por aqui entre um a três anos, como todos os outros naturalistas.
Nas quase duas décadas em que percorreu o território brasileiro, Natterer foi pegando tudo de diferente que encontrou: objetos confeccionados por diferentes etnias indígenas, animais para serem empalhados, plantas e minerais. Sem imaginar, montou o maior acervo indígena brasileiro, que atualmente está dividido entre o Museu de História Natural de Viena e Weltmuseum Wien, ambos na Áustria. Dos cerca de 50 mil itens que Natterer coletou, 2.368 são peças de povos originários.
“Nada foi roubado, é bom deixar claro. Algumas coisas Natterer comprou e outras ele trocou”, afirma o cineasta brasiliense Renato Barbieri. Ao longo dos últimos 20 anos, ele mergulhou em pesquisas sobre o naturalista austro-húngaro para realizar o documentário “Tesouro Natterer”, que estreou na 29ª edição do festival É Tudo Verdade, realizada simultaneamente no Rio de Janeiro e em São Paulo no mês passado. O filme venceu a competição brasileira do evento.
“Tesouro Natterer” abre nesta quinta (6/6), o ciclo de exibições dos documentários premiados no festival, no Memorial Minas Gerais Vale. Na ocasião, haverá bate-papo com Barbieri e o diretor-fundador do É Tudo Verdade, Amir Labaki.
Até domingo, serão exibidos gratuitamente nove filmes nacionais e internacionais que venceram ou receberam menção honrosa nas categorias de melhor curta-metragem brasileiro, longa ou média-metragem internacional e curta-metragem internacional.
Safra de excelência
“Neste ano, tivemos uma safra de filmes de excelência. Tanto os nacionais quanto os internacionais”, avalia Labaki. “‘Tesouro Natterer’ é um bom exemplo. É um filme muito sólido e muito denso, que discute questões essenciais de hoje, como a defesa das culturas indígenas brasileiras, o debate sobre o que foi a experiência colonial e as experiências dos naturalistas no Brasil”, afirma.
Em formato road movie, o documentário de Barberi reconstrói os caminhos que Natterer percorreu enquanto esteve no Brasil. Para isso, o cineasta contou com auxílio e participação do biógrafo do naturalista, Kurt Schmuttzer. Também há participação do líder indígena paraense Hans Munduruku, que visitou os museus em Viena, levantando a hipótese de repatriação de parte das peças do acervo.
“Não queria fazer um filme que só olhasse para o passado”, diz Barbieri. “A ideia foi olhar para o passado à luz do presente, trazendo questões contemporâneas sobre o violento processo de aculturação pelo qual possamos”, diz.
Cinema engajado
O curta “Aguyjevete Avaxi’i”, de Kerexu Martim, que também será exibido em Belo Horizonte, é outro que traz a cultura indígena para o centro do debate. O filme acompanha a celebração da retomada do plantio do milho em uma área que estava degradada por causa da monocultura de eucalipto dentro da aldeia Kalipety (SP). A aldeia foi reocupada pelos guaranis m’bya há 11 anos e a plantação de milho é significativa por se tratar de um alimento consumido pelos deuses na crença local.
Discussões sobre racismo, violência contra a mulher e imigração são postas, respectivamente, no curta “As placas são invisíveis”, de Gabrielle Ferreira; e nos longas “Diários da caixa preta”, de Shiori Ito; e “Cento e quatro”, de Jonathan Schornig.
Já os curtas “Como agradar”, de Elina Talvensaari; “Parentesco indesejado”, de Pavel Mozhar; e “Só a lua entenderá”, de Kim Torres, abordam, respectivamente, o sistema de asilo finlandês, a guerra na Ucrânia e o sentimento de pertencimento de um costa-riquenho em sua cidade natal.
Por fim, o longa “Zinzindurrunkarratz”, de Oskar Alegria, explora a memória e o silêncio ao mostrar um cineasta refazendo o caminho que os pastores de sua cidade faziam para chegar às montanhas.
“Todos esses títulos que estamos levando para Minas mostram o quanto a edição deste ano do festival apresentou filmes com os mais variados temas e estéticas”, diz Labaki.
“Nesse mundo de imediatismo das redes sociais e de fake news, vejo o documentário, com todo o seu cuidado em apresentar histórias não ficcionais com refinamento estético, quase como um antídoto para as notícias falsas. Não é à toa que acho que o documentário, hoje em dia, vive um pico de popularidade. Nunca se falou tanto de documentário. Nunca se viu tanto documentário. E nunca tantos realizadores fizeram tanto documentário”, acrescenta Labaki.
PROGRAMAÇÃO
Quinta (6/6):
• Tesouro Natterer”, de Renato Barbieri, às 19h30
Sexta (7/6):
• “Aguyjevete Avaxi’i”, de Kerexu Martim; e “As placas são invisíveis”, de Gabrielle Ferreira, às 16h30
Sábado (8/6):
• “Diários da caixa preta”, de Shiori Ito, às 14h
• “Cento e quatro”, de Jonathan Schornig, às 16h
Domingo (9/6):
• “Como agradar”, de Elina Talvensaari; “Parentesco indesejado”, de Pavel Mozhar; e “Só a lua entenderá”, de Kim Torres; às 11h
• “Zinzindurrunkarratz”, de Oskar Alegria, às 14h
FESTIVAL É TUDO VERDADE
Exibição dos filmes premiados e com menção honrosa na edição 2024 do festival. Desta quinta-feira (6/6) até domingo (9/6), no Memorial Minas Gerais Vale (Praça da Liberdade, 640, Funcionários). Entrada franca, mediante retirada de ingressos no local. Mais nformações: (31) 3308-4000.