Em 29 de novembro de 2001, Marcelo Camelo lamentava a morte de um de seus maiores ídolos, George Harrison (1943-2001). “Me sinto como qualquer fã de Beatles que cresceu ouvindo as músicas deles. Estou muito chateado”, declarou o guitarrista e vocalista dos Los Hermanos. No mesmo ano, o multi-instrumentista inglês havia participado de uma versão de “Anna Júlia”, hit do primeiro disco da banda de Camelo, "Los Hermanos" (1999), e que, depois de sua morte, ganharia a conotação de “presente de despedida” ao grupo carioca.
Um dos fundadores do conjunto britânico de rock progressivo Traffic, Jim Capaldi (1944-2005) lançou em 2001 o álbum solo "Living on the outside", que trazia “Anna Julia” (sem o acento no segundo nome). Além de Harrison na guitarra, a canção repaginada contava com os vocais de apoio de Paul Weller (The Jam) e a bateria de Ian Paice (Deep Purple).
Mas enquanto a versão original fez os Los Hermanos atingirem o sucesso comercial – o trabalho homônimo ganhou disco de ouro, com mais de 100 mil cópias vendidas –, a “xará inglesa” teve uma repercussão fria no Brasil, como recorda o crítico musical Bento Araújo.
“Eu trabalhava em uma loja de discos (em 2001). Lembro de pessoas tirando sarro. Os Los Hermanos são uma banda que muita gente ama ou odeia. Na época, teve gente que criticou muito o George por isso”, conta Araújo, também criador da revista Poeira Zine e autor de livros como “Lindo sonho delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil” (2016).
O jornalista frisa que “Anna Julia”, de Capaldi, Harrison e companhia, “não acrescentou nada em relação à original, do ponto de vista artístico, por trazer o mesmo arranjo”, porém, faz questão de defendê-la sob outro prisma. “Acho legal e válido o fato de ser uma versão de uma banda brasileira e um hit do rock nacional e uma forma de reconhecimento à carreira dos Los Hermanos”, diz.
Sem surpresa
Professor, escritor e autor do livro “Nas trilhas do rock: contracultura e vanguarda” (2021), José Adriano Fenerick não viu com espanto a decisão de Harrison em participar dessa versão. “Há uma dinâmica dos Beatles que trabalha com o aspecto da música pop, no sentido mais tradicional, com um refrão que gruda na cabeça, e uma que trabalha com elementos de experimentação e vanguarda musical, cada vez mais forte a partir do 'Revolver' (1966)”, assinala. “Se a gente olha a trajetória dos quatro integrantes após o fim dos Beatles, vamos entender que vão se tornando cada vez mais pop.”
E completa: “Não me surpreende nem um pouco o George Harrison ter participado dessa música, do mesmo modo que ele, em outra chave, participou de gravações de músicas mais elaboradas com (o músico indiano) Ravi Shankar (1920-2012) e de filmes do Monty Python”.
Quanto à decisão de Capaldi em coverizar “Anna Júlia”, Bento Araújo relembra a conexão do músico com o Brasil. “Ele (Capaldi) visitou o país para curtir o carnaval na década de1970, conheceu e se casou com a Ana Capaldi e chegou a morar três anos no Brasil no fim dos anos 1970. Ele regravou músicas brasileiras, era amigo do Rivelino, tinha foto com o Pelé e era fanático pelo futebol brasileiro.”
“ENTRE ACORDES”
Série do Estado de Minas conta histórias e curiosidades do mundo da música e seu impacto na cultura pop, por meio de oito reportagens focadas em grandes nomes do rock mundial.