Maria Silvia Duarte Guimarães*
A coletânea “Como me contaram: fábulas historiais (volumes I e II)”, de Maria José de Queiroz, organizada por Lyslei Nascimento e publicada pela editora Caravana, de Belo Horizonte, ganha uma preciosa edição. Originalmente publicado em 1973, o volume 1 foi acrescido do segundo volume inédito, revisto pela autora, falecida em 2023.
No primeiro volume, a escritora entrecruza relatos de contadores de histórias, acontecimentos históricos com o que ela construiu ficcionalmente. Em alguns textos, é possível encontrar referências a documentos e registros oficiais, como os de “Autos da devassa da Inconfidência Mineira”, bem como citações diretas e indiretas a contadores de casos e a escritores, como Jorge Luis Borges.
O primeiro volume é marcado por uma particularidade: a maioria dos títulos faz referência a cidades de Minas Gerais. No entanto, em seus textos, Queiroz não se preocupa em fazer descrições físicas dessas localidades, mas relata histórias que podem ou não ter acontecido. Em muitos dos textos, Barão de Cocais, Mariana, Vila Rica ou Sabará, e às datas, que vão de 1696 a 1972, surgem “como me contaram”, em “fábulas historiais”.
Há, desse modo, uma tensão entre a escrita da história e a escrita da ficção nos textos ali enredados, desde o subtítulo “fábulas historiais”. Os textos de Queiroz podem ser considerados históricos, na medida em que possuem um forte apelo documental, no entanto, o livro possui, também, o aspecto fabular: a imaginação que é entrevista em meio a cidades reais e acontecimentos históricos citados.
Trata-se, assim, de um texto híbrido, que mescla não apenas gêneros diversos, mas também registros de relatos orais, reais ou não, fatos históricos, também controversos, e uma estupenda literatura citada pela autora.
“Mariana, 1752”, presente no volume 1, pode ser considerado o texto mais emblemático da coletânea. Nele, o leitor não se depara com um poema ou com um conto, propriamente dito, mas com uma lápide, na qual é possível ler o epitáfio de Maria Brites.
Esta é descrita como “mestiça, sem letras, sem bens, sem terras”, em oposição ao homem a quem serviu, Bernardo Ravasco de Oliveira Fortes, “de sangue nobre, perito em leis, valente em armas”. Em sua própria lápide, a descrição da mulher é apagada e a do senhor ganha protagonismo.
Em nota de rodapé, a escritora afirma: “Entre duas datas abstratas permiti-me inserir-lhe a história: é fato”. Dessa forma, em seu breve texto, ela retrata não apenas a vida de Maria Brites, mas de como poderia ter sido a vida de outras mulheres escravizadas e espoliadas em vida e após a morte.
Minas e o mundo
No segundo volume, as cidades mineiras abrem-se para o mundo. Nesse sentido, China, Índia ou Itália aparecem ligando os personagens a espaços, reais e ficcionais.
Em “A biografia fantástica de Augusto Feltrinelli”, por exemplo, a narradora conta a história de duas famílias de origem italiana, os Busoni e os Feltrinelli, e de como seus caminhos se cruzaram. Na juventude, Maria Busoni Silveira havia sido noiva de Augusto Feltrinelli, mas o retorno da família dele para a Itália desfez o noivado.
Anos mais tarde, nos anos 1970, quando Maria já era viúva de Pedro Silveira e contava com muitos netos, ela descobriu o paradeiro de um dos membros da família de Augusto: Luigi Feltrinelli. Com a ajuda de uma tradutora, Maria decifra as cartas trocadas com Luigi, que revelam, aqui e ali, pormenores da vida de seu antigo amor, falecido durante a guerra. Nas entrelinhas dessa correspondência, Maria tece sua própria narrativa sobre a vida, os amores e a guerra.
Queiroz, desse modo, vale-se, nessa coletânea, de uma capacidade singular de entremear histórias e fábulas, prosa e poesia, arte e registro histórico. Em ambos os volumes, o pano de fundo é o território mineiro, com seus vãos e desvãos, sua história miúda, vista de baixo. Maria José de Queiroz é uma escritora solar. Minas Gerais espraia-se por sua obra memorável. Ler os seus textos ilumina a cultura e as tradições mineiras que atravessam o Brasil.
"COMO ME CONTARAM: FÁBULAS HISTORIAIS (VOLUME I E II)”
Maria José de Queiroz
Editora Caravana (168 págs.)
R$ 60
* Maria Silvia Duarte Guimarães é mestre em Letras pela UFMG e doutoranda em Letras: Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Autora de “Tecer o visível e entretecer o invisível: cidades invisíveis em Italo Calvino e Maria José de Queiroz” (Caravana, 2019).