Um dedo do meio para todo mundo: os politicamente corretos, as feministas iradas, os velhos nacionalistas reacionários, os políticos cínicos, os repórteres oportunistas, os burocratas da cultura. Ninguém sai ileso em “Testamento”, novo filme do cineasta canadense Denys Arcand, que estreia nesta quinta (27/6), no cine Ponteio.


O arquivista septuagenário Jean-Michel Bouchard (Rémy Girard) vive em uma casa de idosos. Sua diversão é passear pelo cemitério pensando na morte. Jovens manifestantes passam a se reunir diariamente em frente ao asilo para defender a remoção do mural que consideram racista, com a imagem de Jacques Cartier (explorador francês que deu início à colonização do Canadá, no século 16) conhecendo um grupo de indígenas seminus.

 


Ao mesmo tempo em que é atravessado por um mundo que não compreende, Jean-Michel encontra o amor na diretora da instituição, Suzanne Francoeur (Sophie Lorain).

 




Diretor de “O declínio do império americano” (1986) e “As invasões bárbaras” (2003), que deu o único Oscar ao Canadá (na categoria filme internacional), Arcand faz sátira sempre inteligente e amorosa, ainda que as plateias costumem se dividir diante de sua obra.


O epílogo de “Testamento”, brilhante, só comprova que Arcand, recém-chegado aos 83 anos, completados na última terça-feira, continua um passo à frente.


O senhor imaginou que ainda filmaria depois dos 80 anos?


Nunca tive um plano de vida, as coisas simplesmente aconteceram. Quando fiz o meu primeiro filme, pensei que seria o último. Fui para a universidade estudar história, arrumei um emprego para fazer um pequeno filme sobre a história do Canadá (“Champlain”, de 1964). Só que ele recebeu o prêmio de melhor curta do ano no Canadá. Então me pediram para fazer outro, as coisas evoluíram e cá estou eu com 83.

 

Ao fim da sessão de “Testamento”, o primeiro sentimento que tive foi: “Não estou sozinha”.


Vou te interromper, pois isso é muito significativo para mim. Quando era jovem e me sentava no cinema para ver filmes de Fellini ou Ingmar Bergman, era este o sentimento que eu tinha. “Não estou sozinho, esse cara está dizendo o que quero dizer.” É por isso que faço filmes.

 

Não estou sozinha e acredito que outros também, pois “Testamento” foi um sucesso na província de Québec. Os jovens abraçaram o filme?


Não todos. O filme realmente foi muito popular, mas houve pessoas que falaram muito mal dele e de mim. Disseram que é horrível, ficaram com raiva. Houve muita discussão na internet, então ele ficou longe da unanimidade.

 

O ator Remy Girard (em primeiro plano) protagoniza "Testamento"

Jan Thijs/Divulgação

 

Fazer ironia nos dias de hoje ficou mais complicado?


Acho que sim, principalmente porque os jovens estão adotando posturas muito moralistas. Não é uma postura política, como foi no passado. Quando era mais jovem, fui atacado porque havia gente que pensava que eu não era um bom marxista ou havia negligenciado algum aspecto político nos filmes. Mas, hoje em dia, vejo que os jovens têm uma posição que não é política, não é econômica. É moral. “Somos mulheres, fomos discriminadas, então ninguém pode falar mal das mulheres.” Eu concordo, mas não podemos rir, fazer uma brincadeira?

 

“Testamento” é seu quinto filme com o ator Rémy Girard. O senhor escreve pensando nele?


Nunca escrevo para ninguém específico, porque acho isso limitador. Quando escrevo, tento não ser um diretor de cinema, apenas um escritor. Só quero que o personagem reflita o pensamento que tenho. Eventualmente, ele é Rémy Girard. Começamos a trabalhar juntos muitos anos atrás, quando ele encenou na Cidade de Québec um pequeno texto que escrevi. Ele dizia as minhas falas exatamente da maneira como eu queria. Quando fiz “O declínio do império americano”, entrevistei cada ator separadamente antes. A garota que interpretou a mulher do Rémy chegou com uma lista com 62 perguntas para mim: 'comi antes daquela cena?', 'estou usando sapato ou tênis?'. Ela tinha toneladas de perguntas e tentei respondê-las da melhor maneira. Muitas vezes, inventei as respostas. Aí o Rémy apareceu e perguntei: “Você leu o roteiro?”. Ele disse que sim. “Tem alguma dúvida?”. Ele: “Não”. “Está pronto para filmar?”. Ele: “Sim”. E foi isso. Mando para ele o roteiro, ele diz que está tudo bem e pronto. Nunca há nenhum tipo de discussão sobre o personagem. E quando digo ação, a fala dele é simplesmente perfeita. É muito estranho o nosso relacionamento, mas funciona.

 

 

Muita gente considera seus filmes pessimistas, mas “Testamento” termina de forma absolutamente otimista.


É verdade. As pessoas muitas vezes se enganam sobre meus filmes, porque neles há sempre outro personagem que nunca se vê e sobre o qual não se fala: a câmera. Os atores dizem coisas pessimistas com frequência, mas quando estão conversando, há o personagem mudo que está dizendo: você tem esse homem e essa mulher, eles são bem velhos, mas estão apaixonados. Isso lá é ser pessimista? Foi a mesma coisa com “O declínio do império americano” e “As invasões bárbaras”. Há pessoas cheias de ternura, lugares agradáveis em um país muito pacífico. Portanto, não se deixe enganar pelo que os intelectuais estão dizendo. Pessoas vagamente intelectuais são sempre pessimistas. Mas há muitas outras coisas nos meus filmes.

 

“Testamento” será seu último filme?


Não faço ideia. Ainda estou com boa saúde. Se estiver bem, escrever algo que seja interessante ou válido, farei outro filme. 

 

“TESTAMENTO”
(Canadá, 2023, 115min., de Denys Arcand, com Rémy Girard e Sophie Lorain) O filme estreia nesta quinta-feira (27/6), no Ponteio 2, às 14h30 e 18h50.

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