Na década de 1960, a paulistana Miriam Batucada chamou a atenção com sua música, seu talento e seu carisma -  (crédito: Acervo pessoal)

Na década de 1960, a paulistana Miriam Batucada chamou a atenção com sua música, seu talento e seu carisma

crédito: Acervo pessoal

 


Vida e obra da cantora, compositora, instrumentista e apresentadora Miriam Batucada (1947-1994) são resgatadas do esquecimento pelo historiador e professor Ricardo Santhiago. Durante sua pesquisa, ele encontrou cerca de 50 composições desta paulistana da Mooca.

 


“A história incompleta de Miriam Batucada” saiu pela Editora Popessuara. “Infiel, marginal e artista”, álbum lançado pelo selo Astrolábio, tem 18 faixas e convidados especiais – entre eles, Cida Moreira, Maria Alcina e Zeca Baleiro. Produzido pelo pesquisador, o disco está disponível no streaming e no formato físico.

 

 

 

Também criado na Mooca, Ricardo Santhiago a conheceu por causa da participação dela no cultuado LP “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das Dez” (CBS), de Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Edy Star, que chegou às lojas em 1971. Foi a estreia fonográfica da paulistana.


Usina de ideias



Miriam Ângela Lavecchia era “uma usina de ideias”, mas não teve o reconhecimento merecido na cena da música brasileira, ressalta o biógrafo. A forma como ela morreu – amargurada, sozinha em seu apartamento em São Paulo, o corpo encontrado cerca de 20 dias depois – acabou criando uma espécie de trauma no meio artístico, diz.

 

“Até hoje é um assunto doloroso, sobre o qual poucos se sentem confortáveis em falar”, afirma. “Deixei que o livro ‘se’ escrevesse, do tamanho que precisasse ser para fazer jus a esta figura fascinante, bem como ao seu trabalho.”

 

 

 


Quando Miriam morreu de infarto agudo do miocárdio, aos 47 anos, Santhiago tinha apenas 11. “Tenho referências dela na TV. Sempre teve uma presença forte, era muito carismática”, comenta. Lésbica, sambista e elogiada instrumentista, chamou a atenção após estrear em 1966 como atração do programa de Blota Jr., na Record. Lançou apenas dois álbuns solo – “Amanhã ninguém sabe” (1974) e “Alma da festa” (1995) – e alguns compactos.

 

Raul Seixas

 

Tudo começou quando Ricardo Santhiago quis saber mais sobre a moça do disco “Grã-Ordem Kavernista”. “Raul Seixas e Sampaio eram populares, Edy Star está na ativa até hoje, aos 86 anos. Sobre Miriam, a gente sabia pouco. Fui investigar o enigma, não sabia o que isso renderia. Sou professor universitário na área de história e cultura, poderia fazer uma investigação que virasse artigo acadêmico ou capítulo de um livro.”

 

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Porém, o enigma acabou rendendo a biografia de 372 páginas escrita com a ajuda da irmã da cantora, Mirna Lavecchia, que mora em Maringá (PR). “Logo de cara, essa coisa da figura forte e fascinante se impôs para mim, tanto através das histórias que Mirna me contava quanto através do material que ela me cedeu”, diz. “Tive acesso a cartas, diários, anotações pessoais, material de leitura dela, até coisas insólitas, como contas telefônicas e plano de emagrecimento.”


Sexualidade

 

Santhiago se surpreendeu com o que descobriu. “Miriam era mais do que a personagem italianona, divertida, engraçada. Tinha mais vida por trás disso para ser descoberto.” Ele fez cerca de 80 entrevistas. Algumas conversas foram tranquilas, outras mais difíceis, como no caso de mulheres com quem a cantora se relacionou afetiva e sexualmente.

 


“Este é um tema importante do livro. Não a sexualidade dela por si só. A Miriam foi uma figura lésbica, uma figura homossexual, lida desta maneira pelo público. Era lida como moleca, mais masculinizada.” Em 1986, a artista deu entrevista à edição do “Pasquim” de São Paulo. “Sou tão homossexual como todo mundo”, declarou.

 


A cantora também falou sobre bissexualidade e seu envolvimento com homens e mulheres. “Ela não negava. Mas se colocar afirmativamente como uma figura lésbica seria uma coisa difícil para a geração dela. Hoje, Miriam teria 77 anos. Estamos falando de alguém que apareceu nos anos 1960, na TV Record, como uma pessoa supercomportada”, lembra.

 

O pesquisador Ricardo Santhiago olha para a câmera

O pesquisador Ricardo Santhiago diz que Miriam Batucada, voz feminina do samba de São Paulo, lidou com a própria homossexualidade de forma corajosa

Andrés Costa/divulgação

 


De acordo com Santhiago, por meio “da figura muito autêntica, que não queria imitar os trejeitos das boas moças da época”, Miriam Batucada se mostrava “livre, bem e tranquila com o seu jeito particular de amar.”

 


“Ela surgiu na TV Record, em 1966, no programa do Blota Júnior. Da noite para o dia virou celebridade”, relembra. Ficou famosa, apaixonou-se pela primeira namorada e abandonou tudo para viver esse amor no Rio de Janeiro. “Começou tudo de novo lá, cantando na noite. Ouvia muitas promessas de gente que iria produzir discos dela, mas só conseguiu gravar o primeiro solo em 1974”, lembra o pesquisador.

 

Coragem

 

Abandonada pela namorada, voltou para São Paulo e passou temporada em Portugal, com o coração partido. “Figura superpassional, Miriam extravasava muito a paixão, não tinha medo de viver o amor. Tanto o amor pela música quanto o amor por outra mulher. Foi uma figura de muita coragem e apreço pela liberdade. Ela não teve medo de ser ela mesma”, garante Santhiago.

 


Miriam Batucada era voz feminina no samba paulista, marcado fortemente por figuras masculinas como Adoniran Barbosa. “Ela abria shows dele e ele também participava dos dela”, conta o biógrafo. Porém, mesmo no samba de São Paulo, ela foi “patinho feio por ser mulher”, conclui o pesquisador.



“A HISTÓRIA INCOMPLETA DE MIRIAM BATUCADA”

Livro de Ricardo Santhiago

Editora Popessuara

372 páginas

R$ 65

 


“INFIEL, MARGINAL E ARTISTA”


CD de Miriam Batucada

Selo Astrolabio

18 faixas

Disponível nas plataformas digitais