Ingrid Torelli, David Dastmalchian e Laura Gordon estrelam

Ingrid Torelli, David Dastmalchian e Laura Gordon estrelam "Entrevista com o demônio", longa-metragem que se passa em um talk show

crédito: IFC/Shudder/divulgação

Em 1982, foi publicado, na revista October, o ótimo texto “The future of allusion” (O futuro da alusão), em que Noel Carroll discorre a respeito de uma série de citações, diretas ou indiretas, que se tornaram mais frequentes nos filmes a partir da popularização das escolas de cinema e do maior conhecimento da história da sétima arte.


Não se imaginava, naquela época, que um filme como “Entrevista com o demônio”, de Cameron e Colin Cairnes, praticamente um compilado de alusões a outros filmes, pudesse ser feito.

 

 


Na trama, Jack Delroy, apresentador de talk show da TV americana, interpretado com brilho por David Dastmalchian, está em franca decadência após a morte de sua mulher atriz. Ele resolve apelar e entrevistar uma escritora que controla uma menina possuída por um demônio.


Mas chama também um mágico que se especializou em desvendar charlatanismos dessa espécie, o que deixa o demônio dentro da menina ainda mais incomodado e disposto a fazer estragos.

 

 

Desde o início, são vários os filmes citados, a maioria dos anos 1970, época em que a trama é ambientada: “O massacre da serra elétrica”, “Irmãs diabólicas”, “O exorcista”, “O fantasma do paraíso”, “Carrie: A estranha”, “Rede de intrigas”, e por aí vai.


Alusão a Brian De Palma

 

 

Não é curiosa a ausência de alusões a “Ghostwatch”, de 1992, já que este telefilme de Lesley Manning, produzido e exibido pela BBC, tem em sua estrutura um molde para “Entrevista com o demônio”, com a marcante diferença de que este último se passa quase todo no estúdio de televisão, enquanto o outro traz reportagens na casa onde ocorreram as atividades paranormais.


Um filme que faz alusões a dezenas de outros não é necessariamente ruim ou bom. A alusão, por melhor que seja o filme de referência, não garante qualidade. Mas é um artifício tão frequente, dada a configuração do cinema nos últimos anos, que pode surgir sem que o diretor perceba.

 

 

 


Os irmãos diretores de “Entrevista com o demônio”, cujo filme anterior, “Scare campaign”, de 2016, é também um terror envolvendo um programa de TV, sabem muito bem onde estão pisando. Partem da ideia do “found footage”, mas buscam em diretores dos anos 1970, principalmente em Brian De Palma, a solidez estética de que precisam para amedrontar o público.


Artimanhas

 


Há um risco em recriar programa vagabundo de TV no cinema. Se o filme inteiro for esse programa, é difícil resultar em algo marcante. No cinema, raramente menos com menos dá mais. O filme inteiro depende unicamente de um conceito, logo, há uma clara limitação de princípio.


Quando Brian De Palma simula um programa ruim de TV no começo de “Irmãs diabólicas”, ele conta com o contraste entre as imagens vistas nesse programa fake e as imagens de cinema que o filme passa a mostrar em seguida.


Em “Entrevista com o demônio”, o que não é o programa vagabundo é um aglomerado de imagens de bastidores mal captadas, como se uma equipe amadora estivesse ali registrando o tempo todo os preparativos do programa no estúdio.


Essa limitação é resolvida parcialmente por Cameron e Colin pela dinâmica da proposta e pelas artimanhas dos produtores e do apresentador para manter o programa no ar. Como em “Rede de intrigas”, vale tudo pela conquista de maior audiência.


Começo perigoso

 

 

Há ainda uma questão importante a ser discutida: o uso da polêmica inteligência artificial (IA) em três imagens estáticas. De fato, esse uso pode ser algo nocivo em todos os campos profissionais, ainda mais em uma arte tão prejudicada por inúmeros fatores, incluindo o econômico.


Por outro lado, quem o vê sem saber desse detalhe da produção percebe que o filme tem seu valor. Por que esse valor desapareceria quando passamos a saber do uso da IA?


Entende-se que é um começo perigoso, que pode desmantelar toda uma cadeia produtiva e transformar o cinema em outra coisa. A questão mais importante, por enquanto, é o filme em si, o resultado do que vemos na tela.


Este, sim, pode ser criticado por algumas opções – o exagero dos minutos finais, por exemplo, ou a limitação anteriormente mencionada. Só não dá para rejeitá-lo por completo, ainda, de um ponto de vista da crítica. (Sérgio Alpendre)

 

“ENTREVISTA COM O DEMÔNIO”
Direção de Cameron e Colin Cairnes. Com David Dastmalchian, Laura Gordon e Ian Bliss. Em cartaz nas redes Cineart, Cinemark e no Una Cine Belas Artes(Rua Gonçalves Dias 1.581 – Lourdes).