Elisa, então com pouco mais de 20 anos, não cometeu erro nenhum. Mas não aos olhos dos pais, fazendeiros do interior de São Paulo. À revelia da única filha, a enviam para Barbacena, sobre a qual ela nunca tinha ouvido falar. No vagão do trem, seus companheiros vomitam, urinam, choram. Só chegando ao seu destino Elisa descobre que é uma “indesejada social”.
Ela se torna mais uma interna do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, conhecido como Colônia. Naquele ano de 1971, seu pecado foi engravidar – e mulheres solteiras que tinham filhos sem casar eram uma constante ali. Inclusive a pessoa que se tornou mais próxima de Elisa, protegendo-a na difícil adaptação. Só que Wanda estava havia décadas naquele lugar e não via a menor possibilidade de sair dali.
Com estreia nesta quinta (11/7), no UNA Cine Belas Artes, “Ninguém sai vivo daqui”, de André Ristum, recria, por meio da ficção, aquele que é chamado de “holocausto brasileiro”. Este é o título do livro-reportagem (2013) da jornalista mineira Daniela Arbex (que gerou ainda o documentário homônimo, de 2016), a porta de entrada para o cineasta para um pesadelo.
Ao longo do século 20 (o Colônia foi criado em 1903), cerca de 60 mil pessoas morreram ali, em decorrência de maus-tratos, tortura e abandono. Setenta por cento dos internos não tinham histórico de doença mental.
Com Fernanda Marques como a protagonista Elisa – a mineira Rejane Faria, de “Marte Um”, interpreta Wanda –, o filme é o segundo projeto dirigido por Ristum em torno dessa história. Há três anos, foi lançada no Canal Brasil e no Globoplay “Colônia”, série em 10 episódios que acompanha estas e outras personagens. Já naquela época estava em curso o projeto de fazer também um longa-metragem.
“Os dois projetos começaram meio que juntos, mas conseguimos financiar a série mais rapidamente. Claro que houve pontos que fizemos exclusivamente para o filme, mas a ideia sempre foi usar a mesma história para uma série e um filme, inclusive para atingir públicos diferentes”, conta Ristum.
Série
Longa e série acompanham o drama de vários internos do hospital, com o protagonismo de Elisa. Na versão para o cinema, a trajetória da personagem cresce em detrimento de outras. Caso de Valesca (Andreia Horta), que tinha um arco importante na série e no longa perdeu sua força.
Ristum tinha uma narrativa de 4h30 para televisão que se tornou um filme com menos de 90 minutos. Foram vários cortes, ele conta, para chegar à versão final. “Porque quando a gente está mergulhado numa história, é muito difícil ter discernimento do que está sobrando. Tanto que (para o filme) foi um processo feito com muita tranquilidade e reflexão. Fiquei apegado depois de trabalhar em uma estrutura narrativa de 10 episódios.”
As filmagens foram realizadas em 2019, em um convento que estava fechado na cidade de São Paulo. Ristum chegou a pensar em filmar em Barbacena, que visitou algumas vezes. Conversou com alguns antigos pacientes, inclusive. “Mas acharam melhor não reproduzir nada lá (desde 1996, o prédio do Colônia é o Museu da Loucura). O antigo convento estava em um estado deteriorado o suficiente para podermos rodar. E esta locação é um grande personagem do filme.”
Que ganha mais força, inclusive, com a fotografia (de Hélcio Alemão Nagamine) em preto e branco. Agora, com a chegada à tela grande, ela vai se tornar mais expressiva. “Quando a projeção é de qualidade, você vê o preto sendo preto, o branco, branco, e sente todo o trabalho das sombras. Porque, na televisão, de fato, temos esta limitação.”
“Ninguém sai vivo daqui” participou da seleção oficial do Tallin Black Nights, na Estônia, e abriu o Festival de Brasília – ambos em 2023. Ao se ver na tela do cinema como Elisa, Fernanda Marques comenta que percebeu as próprias mudanças como atriz. “Ao revisitar trabalhos, você se vê de uma forma que não é mais. Na época (da filmagem), eu tinha a mesma idade da personagem, era também mais menina, o que combinava com a Elisa.”
“NINGUÉM SAI VIVO DAQUI”
(Brasil, 2023, 86min.). Direção: André Ristum. Com Fernanda Marques, Augusto Madeira e Rejane Faria. O filme estreia nesta quinta-feira (11/7), no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 13h50; Sala 2, 18h40).
“SEGREDO” REVELADO
O horror do Colônia veio a público em 1961, com imagens do fotógrafo Luiz Alfredo para a revista “O Cruzeiro”. Mas foram as ideias de um italiano, o psiquiatra Franco Basaglia, que serviram de estopim. Basaglia, que em 1979 esteve algumas vezes no Brasil, visitou o Colônia, que considerou “um campo de concentração nazista”.
O primeiro livro-denúncia sobre o terror das instituições de saúde mental é “Nos porões da loucura” (1982), do jornalista mineiro Hiram Firmino, resultado da série de reportagens publicada em setembro de 1979 pelo Estado de Minas. Outra realização que serviu foi o curta “Em nome da razão” (1979), primeiro filme de Helvécio Ratton. Somente em 2001 entrou em vigor a Lei Federal de Saúde Mental, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais.