Rita Lee escreveu "O mito do mito" de 2005 a 2019. No romance, ela e a irmã convivem com o fictício analista Kasperhauss  -  (crédito: Zé Paulo Cardeal/Globo/2006)

Rita Lee escreveu "O mito do mito" de 2005 a 2019. No romance, ela e a irmã convivem com o fictício analista Kasperhauss

crédito: Zé Paulo Cardeal/Globo/2006

 

Em “O mito do mito” (Globo Livros), duas curtas palavras na capa certamente vão levar a obra à lista dos mais vendidos: “Rita” e “Lee”.

 


A rainha do rock brasileiro se tornou best-seller em 2016, quando lançou “Rita Lee: Uma autobiografia”, relato franco e divertido de uma vida de música, ativismo político, veganismo, consumo de drogas e formação de uma família feliz.

 


Quando morreu de câncer, em maio do ano passado, seu livro de memórias foi novamente ao topo das vendas, e isso foi seguido por mais um volume, “Rita Lee: Outra autobiografia”, dedicado ao tratamento do tumor no pulmão diagnosticado em 2021. Saiu duas semanas após sua morte.

 


Agora Rita Lee tem outra publicação póstuma, e é uma obra de ficção. Ou quase isso.

 

 


“O mito do mito” tem três personagens, dois deles reais, Rita e sua irmã, Vivian. Mas a trama insere as duas numa madrugada delirante na qual o terceiro personagem é misterioso e certamente fictício, embora talvez recheado de características de pessoas que cruzaram a vida da autora.

 

O guardião

 

Rita Lee começou a criar o romance em 2005 e o reescreveu algumas vezes até a conclusão, em 2019. Mostrou o resultado ao jornalista e editor Guilherme Samora, seu amigo e escudeiro na publicação das duas autobiografias, alguém que ela define como “o guardião do meu legado”.

 

Ela deixou o livro pronto, em todos os detalhes. Escolheu a foto de capa e trabalhou nos aspectos gráficos, inclusive as bordas das páginas pintadas de preto e a inserção de um capítulo apêndice que está publicado no final com as páginas de cabeça para baixo.

 

Rita determinou a Samora que o livro só poderia ser publicado depois de sua morte. “Não quero ninguém me perguntando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais. Escritora-mistério!”.

 

Seu viúvo, Roberto de Carvalho, teve o livro guardado por anos em seu computador, sem saber. Ela tinha o hábito de passar ao marido alguns arquivos de texto que ele guardava como se fosse um backup, sem ler o que havia ali.

 

Atendendo à vontade de Rita, uma decisão conjunta de Samora, Carvalho e da Globo Livros determina que nenhum deles dará entrevista. Carvalho chegou a publicar um depoimento na internet, só para celebrar o lançamento, sem falar do conteúdo.

 

Rita Lee beija Roberto de Carvalho

Roberto de Carvalho guardou, sem saber, os originais do livro de ficção de Rita em seu computador

Instagram/reprodução

 

A ficção “O mito do mito” se afasta do tom coloquial e descontraído das duas autobiografias. O texto é construído pelo diálogo entre Rita e um psicólogo com fama de guru, durante consulta num casarão no Centro de São Paulo. A conversa avança pela madrugada e o tema principal é a relação entre fãs e ídolos.

 

Abordagem inédita

 

A narrativa flui em grandes doses de ironia despejadas por Rita. Além de bem escrito, o romance traz uma discussão sobre idolatria nunca oferecida na literatura nacional.

 


Ela fala de seus fãs, contando casos e criando teorias sobre os vários tipos diferentes de adoradores que cruzaram sua estrada. Mas às vezes se coloca, ela mesma, na posição de fã, citando um grupo muito peculiar de nomes pelos quais teve devoção, da cachorra do cinema Lassie à apresentadora Hebe Camargo, passando por James Dean, Carmen Miranda e David Bowie.

 

A cadela Lassie e os atores  June Lockhart e Jon Provost no seriado Lassie

Rita Lee idolatrava a cadela Lassie, estrela do seriado protagonizado também pelos atores June Lockhart e Jon Provost

CBS/reprodução

 

O humor e o tom de fantasia que sempre estiveram em suas criações estão impregnados em “O mito do mito”.

 

A começar pelas circunstâncias envolvendo a ação. Rita aceita encontrar o psicanalista Eric von Kasperhauss na única condição oferecida pelo terapeuta. Ele só atende quem o procura depois que o sol se põe, num velho casarão. Detalhe: a pessoa precisa entrar sozinha no lugar.

 

Numa pífia tentativa de ter alguma segurança diante de um sujeito envolto numa aura vampiresca, ela convence a irmã a ir com ela. Rita põe uma escuta em sua roupa, e Vivian pede licença a uma trupe de hippies que mora em barracas próximas ao casarão para ficar ali e escutar a conversa. Nessa disposição dos personagens, a trama leva a um final “surpresa”.

 

Deboche e carinho

 

Rita usa as perguntas de Kasperhauss e as observações debochadas da irmã para guiar a exposição de suas opiniões sobre a idolatria. Entre relatos carinhosos e inevitáveis deboches diante de situações ridículas, parece haver espaço para todos no coração da mãezona Rita – a ponto de dedicar o apêndice a uma descrição engraçada de tipos diferentes de admiradores.

 

A grande preocupação da autora em ser questionada a respeito do que é verdade ou não no romance acaba se revelando um medo infundado. É claro que quem viveu próximo a ela reconhecerá a veracidade de episódios que envolvem nomes famosos e irá descobrir de quem ela está falando em passagens que preservam os anonimatos. Mas o foco da obra não é esse.

 

O que fica do livro “O mito do mito”, além de horas bem divertidas de leitura, é mais uma chance de aproveitar o imenso talento que Rita Lee tinha com as palavras. (Thales de Menezes)

 

Rita Lee na capa de seu romance póstumo

Rita Lee na capa de seu romance póstumo

Reprodução

 


“O MITO DO MITO”


• Livro de Rita Lee
• Globo Livros
• 184 págs.
• R$ 64,90
• R$ 44,90 (ebook)