Fausto Fawcett costuma dizer que não escreve ficção científica – e, sim, exagera na realidade. Foi pesando a mão na criatividade que o carioca pavimentou sua carreira artística desde 1987, quando lançou o álbum “Fausto Fawcett e os robôs efêmeros”.
Logo no disco de estreia, ele cantou a história do turista cientista marginal americano que passeia pelo lado asiático de Copacabana, encara um eclipse solar e encontra toda a sorte de purpurinas e macumbas no submundo da prostituição, crime e violência. Tudo isso faz parte de “Gueixa vadia”, parceria dele com Carlos Laufer.
Fausto também narrou a história do estudante de comunicação que divide apartamento com cinco viúvas sinistras praticantes de “tiro ao alvo em réplicas das estátuas do Aleijadinho” (“O rap d'Anne Stark”, outra parceria com Laufer).
Sobretudo, Fausto Fawcett apresentou aos brasileiros “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá”, sucesso de Fernanda Abreu, aliada de primeira hora dele. A “louraça satanás/ gostosona e provocante” que usa “calcinhas bélicas” e manda recado pelo rádio: “Alô polícia/ Eu tô usando/ Um exocet.”
No romance “Favelost” (2006), Fausto sugeriu a existência da mancha urbana que liga São Paulo ao Rio de Janeiro numa só cidade. O dinheiro corre solto por lá e tudo é descartável. Nada dura mais que três meses. Não há família, amizade e nem lazer.
Aos 67 anos, Fawcett admite que a realidade do Brasil e do mundo não está distante dos cenários distópicos desenhados por ele há quatro décadas.
“Outro dia, estava vendo uma notícia sobre a descoberta de microplástico no corpo humano. São partículas que estão no ar e até na água. Ou seja, é uma situação absurda, mas presente na nossa realidade”, comenta o músico e escritor.
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Dos absurdos que contaminam o presente nasceu o álbum de inéditas “Favelost – O disco”, cujas canções foram compostas em parceria com Jarbas Agnelli, artista ligado à música eletrônica. O projeto conta com participações de André Abujamra, Irmãs Paixão, Marcos Suzano e Rodrigo Sha.
Veja clipe de Fernanda Abreu na pele de Kátia Flávia, a Godiva do Irajá:
Homônimo ao livro de 2006, o álbum não é adaptação do romance, embora parta da premissa surrealista daquela publicação para narrar história de amor no ambiente distópico em que as relações são descartáveis.
Sujeira eletromagnética
Em nove faixas, “Favelost – O disco” se apresenta como ópera-rock cibernética na trilha da estética característica de Fawcett, apelando para ruídos eletrônicos e toda a “sujeira eletromagnética” presente em sua obra.
As faixas são entrecortadas por vinhetas gravadas pelo músico e pela atriz Carolina Meinerz. Os dois representam o casal protagonista, que chega à malha urbana caótica chamada Favelost com o intuito de conseguir algum dinheiro.
“É um território off-Brasil, que recebe pessoas cansadas, insatisfeitas com a vida, e acreditam que vão ganhar dinheiro rápido se forem para lá”, diz Fausto.
O problema é que tal percepção não se confirma na realidade. Nessa espécie de favela, as pessoas perdem a própria essência e se transformam em cobaias de um sistema gigantesco e injusto.
Para entrar ali, é necessário passar pelo “baile”, pedágio que aceita quem tem os pés mais dançantes. Os aprovados encontram “guindastes evangélicos instalados em buracos da fé”, que transformam o “básico instinto religioso em banalidade astérica de televisão”, canta Fausto em “Guindastes evangélicos”.
Se a mercantilização da fé é tratada nesta faixa e em “Ó, coração de Jesus”, os multimilionários são alvo da caneta do carioca em “Festa no iate espacial”. Já em “Nuvens de James Brown”, o foco são os rapazes que “saem dos subterrâneos das favelas”.
Ditadura do algoritmo
O repertório de “Favelost – O disco” mostra o quanto as pessoas já não vivem mais por si mesmas. São autômatas, dirigidas por algo ou alguém inescrupuloso. O que, na visão de Fawcett, é muito semelhante à realidade de usuários assíduos das redes sociais, cuja vida é controlada e o comportamento ditado por algoritmos.
“Todos nós, de certa forma, viramos existencialistas sensacionalistas”, ele diz. “Costumo falar que vivemos tempos de extremismos (da política ao clima), a pessoa vê que tudo virou fenômeno extremo e pensa que também pode virar um fenômeno extremo. Acha que todo ato dela será um ‘não’ gigantesco ou um ‘sim’ gigantesco”, observa.
Confira clipe de "Balada do amor inabalável", parceria de Fausto Fawcett e Samuel Rosa que virou hit do Skank:
“Favelost – O disco” não propõe alternativas para reverter esta situação. Tal ideia nunca foi do interesse de Fawcett. Para ele, o próprio público deve refletir sobre a realidade diante de ambiguidades e paradoxos que vêm se tornando cotidianos.
No próximo sábado (27/7), o cantor e compositor carioca vai aterrisar com o disco “Favelost” em Ouro Preto. O show fecha o Marte Festival e começa às 23h, na Praça Tiradentes, com entrada franca.
Na telona
“Fausto Fawcett na cabeça”, dirigido por Victor Lopes, estreia quinta-feira (25/7) nos cinemas brasileiros. A produção ganhou os prêmios de melhor ator/personagem e de melhor filme no Fest Aruanda, concedidos pelo júri oficial da Mostra competitiva nacional de longas-metragens. Também levou o Troféu Abracine, em 2022.
FAIXA A FAIXA
• “Primitivo tambor”
Com André Abujamra e Irmãs Paixão
• “O que é o que não é real”
• “Guindastes evangélicos”
Com Marcos Suzano
• “Nuvens de James Brown”
Com Rodrigo Sha e Irmãs Paixão
• “Festa no iate espacial”
• “Corações flutuantes”
• “Ó, coração de Jesus”
• “Favelost – O baile”
• “Psicótica mãe”
“FAVELOST – O DISCO”
• De Fausto Fawcett
• Produção independente
• 9 faixas
• Disponível nas plataformas digitais