Em “Uma família feliz”, livro de Raphael Montes, o começo é o fim. Logo nos primeiros parágrafos, a personagem Eva enterra o corpo de uma criança no quintal. A sequência de acontecimentos brutais choca e levanta a pergunta: o que aconteceu para que as coisas chegassem a tal ponto?
“No livro, o capítulo inicial é exatamente igual ao último. Não mudo uma palavra. A ideia é que o leitor tenha duas interpretações diferentes sobre o que está lendo nos dois momentos da história”, diz Raphael Montes.
O carioca escreveu oito livros que transitam por suspense, crime e horror, como “Dias perfeitos”, “Jantar secreto” e “Uma mulher no escuro”. Foi co-roteirista dos longas “A menina que matou os pais” e “O menino que matou meus pais”, ambos estrelados por Carla Diaz, sobre o caso Suzane von Richthofen, e roteirista-chefe da série policial “Bom dia, Verônica”, baseada no livro escrito por ele em parceria com a criminóloga Ilana Casoy.
Nesta segunda-feira (29/7), Raphael vai discutir seu livro mais recente, “Uma família feliz”, no projeto Sempre um Papo. Com mediação da jornalista Jozane Faleiro, o evento será realizado na Biblioteca Pública Estadual, às 19h30.
Roteiro e filme
“Uma família feliz” surgiu do roteiro de Raphael para o filme homônimo de José Eduardo Belmonte. Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini interpretam Eva e Vicente, pais das gêmeas Ângela (Juliana Bim) e Sara (Luiza Antunes), de 10 anos.
Moradora de condomínio de classe média alta, a família parece ter saído de um comercial: as gêmeas são lindas e carismáticas, Eva é mãe, esposa e dona de casa perfeita, enquanto a Vicente cabe o papel de pai amoroso e advogado bem-sucedido.
Tudo muda quando Eva dá à luz um menino, Lucas. A criança a rejeita, as tarefas se acumulam e a tranquilidade vira exaustão constante. Quando as crianças surgem com hematomas, Eva passa a questionar a própria sanidade.
“Quando decidi escrever o livro, tomei a decisão de não consultar o roteiro. Conhecia a história há 10 anos. Então, para mim, o que lembrasse era bom e o que esquecesse era porque não valia a pena ser colocado em prosa”, conta Montes.
Com esta decisão, ele aprofundou pontos não abordados no filme, como o passado de Eva e a relação dela com a mãe. “Subtramas dos vizinhos, que ajudam a construir a ideia do condomínio perfeito, também aparecem mais no livro”, diz o autor.
No livro, Raphael trabalhou ideias que surgem de forma diferente no filme, devido a questões de produção. É o caso do condomínio onde Eva mora. No longa de Belmonte, os personagens vivem em casas, mas a ideia original era ter a família no apartamento.
“Pude usar os prédios no livro. O detalhe faz diferença na dinâmica de convivência com os vizinhos, abrindo espaço para outras tensões. Uma coisa é alguém questionar a própria sanidade em uma casa, outra é fazer isso no 15º andar de um edifício, enquanto fica olhando pela varanda”, diz o autor.
Narrado em primeira pessoa, “Uma família feliz” revela os pensamentos de Eva, sejam eles bons ou ruins. A experiência frustrada com a maternidade e o cansaço de conciliar tarefas domésticas e o cuidado com os filhos a afasta de seu trabalho como artesã de bonecas reborn.
Questões como maternidade e depressão pós-parto foram trabalhadas pelo autor a partir de pesquisas e conversas com diversas mulheres.
“Gosto de buscar uma nova voz a cada livro”, conta Raphael. “Hoje, a questão de quem pode escrever o quê na ficção é muito frequente. Como artista, defendo que qualquer pessoa pode escrever sobre qualquer coisa, desde que isso seja feito com responsabilidade. A graça da ficção é justamente ocupar corpos e mentes que não são os seus. Há a ideia, por exemplo, de que só um homem gay pode escrever sobre um homem gay, de que a mulher só pode escrever sobre a mulher, e o homem negro só pode escrever sobre o homem negro. Por ser um tópico tão debatido, quis ainda mais escrever algo pela perspectiva de uma mulher grávida, algo que jamais serei.”
Apesar do desejo de explorar a maternidade em uma obra de suspense, o cancelamento foi o primeiro tema que moldou a trama de “Uma família feliz”, escrita há mais de uma década.
Eva é amada pelos vizinhos e aceita calorosamente no condomínio Blue Paradise, contanto que cumpra papéis pré-estabelecidos. Ao sinal da mínima rachadura na fachada de perfeição que a sustenta, a personagem é relegada ao ostracismo.
“A origem do livro partiu da minha reflexão sobre a cultura do cancelamento. Me interessava muito como os juízes da internet entravam em perfis de outras pessoas e compartilhavam ofensas a partir de sentenças dadas por eles. Por isso, o livro começa pelo último capítulo e o filme pela última cena. Ao começar pelo fim, o leitor é chamado a julgar e pressupor quem é a mulher retratada ali. Nossa sociedade é baseada em deduções e no pouco diálogo com as pessoas acusadas”, conclui.
SEMPRE UM PAPO
Com Raphael Montes. Mediação: Jozane Faleiro. Nesta segunda-feira (29/7), às 19h30, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (Praça da Liberdade, 21, Funcionários). Entrada franca.
* Estagiária sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria