Amizade entre o inglês TJ Ballantyne (Dave Turner) e a imigrante síria Yara (Ebla Mari) resiste à xenofobia de pequena cidade inglesa traumatizada pelo fechamento de minas de carvão -  (crédito: Synapse/Divulgacao)

Amizade entre o inglês TJ Ballantyne (Dave Turner) e a imigrante síria Yara (Ebla Mari) resiste à xenofobia de pequena cidade inglesa traumatizada pelo fechamento de minas de carvão

crédito: Synapse/Divulgacao

 


Com estreia nesta quinta (8/8), no UNA Cine Belas Artes, “O último pub”, do cineasta britânico Ken Loach, é mais urgente hoje do que quando foi filmado, há dois anos. E também do que quando foi lançado, no Festival de Cannes de 2023. Infelizmente, não é por causa de uma boa notícia.

 


Desde o fim de julho, grupos de extrema direita da Inglaterra têm realizado protestos contra muçulmanos e imigrantes. A onda começou após o assassinato de três crianças em Southport, na região de Liverpool. Mensagens falsas difundidas por extremistas nas redes sociais identificaram o assassino como imigrante islâmico (o que não se comprovou). Centenas de pessoas foram presas até o momento, no maior surto de violência naquele país em mais de uma década.

 

 

Ambientado em 2016, pré-Brexit, “O último pub” também trata do ódio a muçulmanos. Um vilarejo do Nordeste da Inglaterra vive empobrecido desde o fechamento das minas (após a greve histórica de 1984, Margaret Thatcher iniciou programa para fechar as minas de carvão do país).

 


Casas estão à venda por 5 mil libras (cerca de R$ 35 mil). Escolas, salões, comércio, tudo está fechado. Sem mais o que fazer, meia dúzia de ex-mineiros passa os dias no The Old Oak (O Velho Carvalho), o último pub da região, comandado pelo boa-praça TJ Ballantyne (Dave Turner).

 

Xenofobia

 

A chegada de nova família de refugiados da guerra na Síria atiça os ânimos. TJ, por seu lado, encontra apoio na amizade com a jovem Yara (Ebla Mari), a mais velha dos irmãos sírios, que tem paixão por fotografia.

 

“O último pub” é o derradeiro filme de Ken Loach, paladino do cinema social. Vencedor de duas Palmas de Ouro (por “Ventos da liberdade”, de 2006, e “Eu, Daniel Blake”, de 2016), ele, hoje com 88 anos, anunciou que este seria seu último longa. Ainda que o tema seja pesado, o drama traz um tom de esperança.

 

 

 

 

O longa encerra uma das mais prolíficas parcerias do cinema. O escocês Paul Laverty, de 67, é roteirista das produções de Loach desde “Uma canção para Carla” (1996). Foram 16 filmes juntos desde então, 14 deles longas.

 

“Os dois filmes anteriores, também no Nordeste da Inglaterra (“Eu, Daniel Blake” e “Você não estava aqui”, de 2019), são difíceis, trágicos. Desde o momento em que conheci Ken, a noção de esperança sempre foi muito importante para nós. Então, sentimos que para encerrar essa colaboração maravilhosa seria interessante dar uma noção de como podemos encorajar uns aos outros. Não era fazer algo nostálgico ou doce, mas algo que realmente nos tocasse”, afirma Laverty.

 


Para a criação do roteiro, ele viajou pelas cidadezinhas empobrecidas onde a história acontece. “Vimos o efeito da desindustrialização. A greve de 1984 foi a maior derrota da classe trabalhadora. Os efeitos disso estão no tecido social dessas vilas. Então, o passado é um personagem do filme”, continua Laverty.

 

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Conhecido por trabalhar com atores não profissionais, Loach escalou Dave Turner, que havia participado de longas anteriores dele, para protagonizar a história. A seu lado, teve uma estreante no cinema, a síria Ebla Mari, professora de teatro em uma vila nas Colinas de Golã.

 


Turner, de 61, foi bombeiro e representante sindical. Vive a 20 minutos da cidade onde foi rodado “O último pub”. Depois de se aposentar, trabalhou cinco anos no pub The Oak Tree. A despeito das experiências anteriores com Loach, ele se surpreendeu ao ser escalado como protagonista. Nunca fez aula de atuação.

 


“(O cinema) Funcionou para mim por causa do Ken Loach e da equipe dele, que facilitam tudo para a gente. Se você fizer algo errado ou não conseguir lembrar as falas, Ken apenas diz: ‘Não se preocupe, é só um filme, podemos fazer de novo’”, comenta Turner. Conta que houve uma sequência, em que TJ perde a paciência, que ele não conseguia fazer. “Então, Ken me deixou muito bravo e consegui. Ele é muito inteligente, entra na sua cabeça.”

 


O papel de protagonista, no entanto, lhe trouxe a síndrome de impostor. Assim que as filmagens terminaram, Turner passou a ter crises de ansiedade. “As pessoas estavam dizendo que o filme talvez fosse para Cannes. Eu estava desesperado para que fosse selecionado, pois sabia que era o último filme do Ken. Achei que se não fosse para Cannes, a culpa teria sido minha.”

 


A ansiedade acabou assim que foi anunciada a seleção. Mas até hoje, quando se vê na tela (já assistiu ao longa 27 vezes), Turner põe reparo em si próprio. Refugiados sírios que estão no filme vivem agruras impostas pelos habitantes locais. “Não fosse pela generosidade de famílias sírias compartilharem suas experiências conosco, o filme poderia não ter acontecido”, acrescenta.

 

Cineasta Ken Loach fala ao microfone durante o Festival de Cannes

Despedida: em 2023, Ken Loach foi ao Festival de Cannes lançar seu último filme

Julie Sebadelha/AFP/27/5/23

 

Almas gêmeas

 

Laverty se tornou roteirista por causa de Loach. “Não acredito que tivemos tanta sorte de trabalhar juntos por 30 anos. Não são apenas os filmes, mas as campanhas políticas, a amizade e muito mais, pois nos tornamos almas gêmeas de verdade”, diz. Para Laverty, a coincidência dos eventos retratados no filme com a vida real torna “O último pub” ainda mais relevante.

 

“Não há desculpas para atacar imigrantes, mas é nas áreas empobrecidas, alienadas, desindustrializadas, que isso acontece. O governo tem que assumir a responsabilidade, mas nós também, para que as pessoas não se movam para a direita, pois os extremistas conseguem capitalizar o medo delas”, conclui Laverty.

 


“O ÚLTIMO PUB”


(Reino Unido/Bélgica/França, 2023, 113min., de Ken Loach, com Dave Turner e Ebla Mari) – Estreia nesta quinta (8/8), às 14h e às 20h30, na sala 1 do UNA Cine Belas Artes.