A cacique Kátia, do povo Akrãntikatêjê, relata que, certa vez, seu pai, Payeré, que lutou contra a invasão de sua terra para a construção da usina hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, lhe disse que se tentassem matá-la, era para fugir. Que deixasse os irmãos serem mortos, mas que fugisse para contar a história. Essa é uma das passagens do documentário "Pisar suavemente na Terra", que acaba de chegar à plataforma Globoplay.
Dirigido pelo documentarista e professor da Universidade Estadual do Arizona (EUA) Marcos Colón, o filme conecta a história de Katia à de outros dois líderes indígenas, todos vivendo uma situação de ameaça. José "Pepe" Manuyama, da tribo Kukama, que vive na Amazônia peruana, luta contra a contaminação do Rio Nanay pelo garimpo e pela extração de petróleo. Também no Pará, o cacique Manoel, do povo Munduruku, tem seu território sitiado pela expansão do monocultivo da soja e batalha contra a extinção da biodiversidade.
Kátia, por sua vez, empreende uma cruzada na tentativa de preservar sua cultura em um território devastado pela mineração, anos após ter visto sua família ser expulsa para a implantação da hidrelétrica no coração da Amazônia. As histórias dos três são costuradas pela narração e pelas reflexões de Ailton Krenak.
Colón diz que "Pisar suavemente na Terra" nasceu da urgência e, na verdade, deriva de um outro trabalho com que estava envolvido.
Urgência nos relatos
"Eu estava fazendo um outro documentário, sobre a pesca ilegal do boto cor-de-rosa, cuja carne é usada como isca para a piracatinga, um peixe que na Colômbia é extremamente valioso. Percorrendo territórios indígenas, me deparei com vários problemas e recebi um convite das autoridades locais para me retirar da região, caso contrário poderia acontecer alguma coisa. O filme que era sobre essa pesca ilegal acabou indo para outro rumo", relata.
Colón conta que, quando a pandemia começou, em 2020, ele já tinha gravado os depoimentos de Pepe e de Manoel. A chegada de Kátia e de Krenak, posteriormente, deu à obra uma feição mais poética e filosófica, conforme aponta. "Contar essas histórias atende a uma ânsia de querer dar visibilidade às agruras dos povos indígenas. Tem uma urgência nos relatos desses personagens, no sentido de denunciar esse sistema que está aí vigente e tem destruído a vida de milhares de povos", destaca.
Sobre Pepe, ele diz tratar-se de um ativista ambiental que luta vigorosamente em Iquitos, a região em que vive, pela preservação do Rio Nanay, que abastece o município de Loreto e está sendo contaminado pelo mercúrio. Ele já foi ameaçado de morte e escreveu o livro, "Um novo amanhecer", previsto para ser lançado em outubro. Colón pontua que, a despeito da presença de Krenak, Kátia é a grande personagem do documentário. "Ela é quem carrega o filme do início ao fim", diz.
Força dialética
O diretor observa que a recomendação que o pai de Kátia fez a ela é uma síntese das situações que "Pisar suavemente na Terra" aborda. "Era com esse pedido de Payeré que íamos abrir o documentário, porque é o que estamos fazendo, sobrevivendo para contar uma história", diz, destacando o poder de síntese e a capacidade que Kátia tem de conectar as pessoas. "Ela tem uma coisa magnética, uma força dialética tremenda. Tem coisas da Kátia que não entraram no filme e são poderosíssimas", ressalta.
Com relação a Manoel, o diretor conta que ele estava sendo ameaçado pelos próprios parentes, que queriam que o cacique abrisse o território para o plantio da soja, que já tinha dominado praticamente tudo na região. "Eu já o conhecia desde meu filme anterior, 'Muito além da Fordlândia', que rodou o mundo e não passou no Brasil, por causa do lobby dos produtores de soja", diz o diretor. Ele também não economiza elogios a Krenak, de quem é amigo pessoal. "Tudo o que ele falou para o documentário foi mágico", destaca.
Colón se considera um parceiro de luta do imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). "Ele é um mentor que nos ensina sobre a necessidade de reconexão, realinhamento do ser e estar no planeta. O título do filme, que vem dele, é um convite. Existe uma amnésia biocultural e Krenak funciona como um antídoto. Essa amnésia biocultural diz respeito a não reconhecermos os povos indígenas pelo que eles são. Ninguém vive por milhares de anos em harmonia com a natureza sem um conhecimento muito sofisticado", observa.
Quatro atos
Ele diz que o documentário é dividido em quatro atos – o anúncio, a guerra, a morte e o horizonte. O primeiro é a profecia do fim do mundo, a destruição da Amazônia, a contaminação dos rios pelo mercúrio, de acordo com o diretor. "A guerra é o momento em que a gente mostra esses processos de invasão e devastação. A morte é a expressão cabal desse fim do mundo. O horizonte é o que nos faz mergulhar em um mundo que não quisemos ver, mas que é a única saída capaz de nos salvar", diz.
Colón evoca Krenak uma vez mais para dizer que o importante não é o desenvolvimento, mas o envolvimento com o planeta. Ele considera que a guerra tem que ser contra o capitalismo na Amazônia, que transforma bens comuns em mercadoria. "O filme tem um desfecho que procura desanuviar um pouco o horizonte, porque é surpreendente que depois de 500 anos de invasão e expropriação, os caras não perdem a alegria, estão ali, celebrando jubilosos sua cultura e seus costumes."
Período turbulento
O documentarista Marcos Colón diz que "Pisar suavemente na Terra" foi realizado entre 2020 e 2021, incluindo o período da pandemia, quando estava filmando no Peru e teve que ficar confinado por três meses. "O lugar onde eu estava era um epicentro de casos de COVID-19. Foi construído lá o cemitério dos sem-nome, porque era muita gente morrendo todos os dias. Quando fechou tudo, ficamos trancados no hotel", diz. A estreia do filme foi na Mostra de São Paulo, no final de outubro de 2022, na véspera da eleição de Lula para seu terceiro mandato como presidente da República. "Foi muito marcante", destaca o diretor.
“PISAR SUAVEMENTE NA TERRA”
Documentário de Marcos Colón. Com Kátia Akrãtikatêjê, Manoel Munduruku, José Manuyama e Ailton Krenak. Disponível no Globoplay.