Em "O mensageiro", Armando (Shi Menegat) leva recados da prisioneira Vera (Valentina Herszage) para a família dela -  (crédito: Imovision/divulgação)

Em "O mensageiro", Armando (Shi Menegat) leva recados da prisioneira Vera (Valentina Herszage) para a família dela

crédito: Imovision/divulgação

A tortura é um fato central no cinema de Lúcia Murat desde pelo menos "Que bom te ver viva". A tortura, o exílio, a morte e a sobrevivência, a angústia estão presentes em seus filmes, que são um dos testemunhos mais fortes sobre o período da ditadura militar no Brasil. Talvez nos melhores de seus filmes existam encontros inesperados, como no caso deste "O mensageiro" e também de "Quase dois irmãos" (2004).

 
Aqui, num primeiro momento, o que está em cena é a dor: a prisão, as lesões de tortura, a perna infeccionada, o sentimento misto de ódio e desmoralização, o orgulho da resistência e a depressão. Tudo isso está nas imagens que o filme nos traz de Vera (Valentina Herszage), a jovem heroína em risco de perder uma perna como decorrência dos maus-tratos sofridos.

 

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Não sentimos a representação: existe verdade, ali. Lembra por segundos um filme de Bresson (Robert): não é uma atriz que está em cena, mas um modelo. Aliás, Lúcia Murat se empenha em diminuir-lhe a expressividade consideravelmente. Seus olhos estão quase sempre ocultos pela luz de Jacob Solitrenik.


Paralelos ideológicos

 

Esse quê bressoniano repete-se na figura de Armando (Shi Menegat), o soldado mensageiro, isto é, aquele que, embora viva no mesmo lugar em que se passam as torturas, se mostra mais solidário à torturada do que aos torturadores. Também Menegat é, antes de tudo, um físico: um porte longilíneo junto a uma expressão um tanto infantil, de quem não entende muito bem o que acontece, mas entende a dor da mulher prisioneira.

 

 

Ele é quem se prontifica a levar uma mensagem de Vera para a família. A operação envolve riscos, inclusive o de ser denunciado pelo amigo, bolsonarista "avant la lettre" (é perceptível a intenção de aproximar o anticomunismo doentio do rapaz tanto da postura da atual extrema-direita quanto do tipo do adepto da repressão dos anos 1970).


A outra parte do filme é bem menos animadora. Quase tudo que acontece na casa dos pais de Vera está em outro andamento: Lúcia Murat regride a um realismo clássico, imitativo e um tanto poeirento, ainda que evite aquela eclosão de sentimentos que pode pôr a perder qualquer filme.

 


Já o namoro de Armando com a jovem proletária é algo que merece discussão. A superposição das imagens da garota e de Vera fazem supor que a verdadeira paixão do mensageiro seja pela prisioneira. Isso pode ser recebido pelo espectador, justificadamente, como um movimento psicológico: ele só se torna mensageiro por amor à torturada, e não pelo fato de ela ter sido torturada. Isso banaliza toda a relação entre ambos (entre todas as personagens, a rigor) sem acrescentar nada substancial à trama.


Entre os altos e baixos que traz "O mensageiro" é um dos filmes recentes mais interessantes que se tem visto nos últimos tempos. No mais, é um espetáculo que corre suavemente, evita o mau gosto (tão facilmente encontrável em cenas onde tortura está envolvida) e em que os momentos bons fazem esquecer as limitações. É, sem dúvida, um filme a ver.


“O MENSAGEIRO”
Direção de Lúcia Murat. Com Georgette Fadel, Valentina Herszage, Shi Menegat, Floriano Peixoto e Higor Campagnaro. Em cartaz na Sala 3 do UNA Cine Belas Artes, às 18h40.