Márcia Francisco*
Um filme que retrata a realidade nos âmbitos da miséria do homem e da violência que habitam este cotidiano precisa ir muito além de um soco no estômago, ele tem que abrir espaço para o pensar. E, assim, nos chega “Mais pesado é o céu”, vencedor de quatro Kikitos no Festival de Gramado em 2023. Trata de temas sérios e graves com a sutileza da poesia, com a intensidade possível na alternância de emoções. Entregas exatas em harmonia que, através da arte, nos permitem abrir o terceiro olho. A medida encontrada pelo cineasta Petrus Cariry é tão justa e perfeita que torna este filme necessário, contemporâneo e absurdamente imperdível.
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Ana Luiza Rios é Teresa. Matheus Nachtergaele é Antônio. Ambos se encontram em uma estrada, a caminho de uma cidade... submersa. No caminho, Teresa encontra e leva consigo o bebê abandonado em um barco. A jornada segue por um brutal, árido e desesperançoso sertão, onde se aventuram, lado a lado, em busca de sobrevivência deles próprios e da criança.
Nesse caminho de desafios infindáveis, encontram Vitória (Silvia Buarque), frustrada em suas expectativas maternas, abandonada em uma casa perdida no meio do nada. Situações e pessoas vão construindo a trama onde o extremo da miséria humana salta aos nossos olhos e adentra nosso pensamento.
Petrus Cariry, aqui, marca um momento de retomada do cinema nacional em contemporaneidade, síntese e evolução. O diretor dá ao público a condição de exercer, para além de sua inteligência racional, a sensibilidade do pensar pelas vias da emoção, do sentimento, da conexão com aspectos intrínsecos do ser humano no trato terreno.
Universal em sua expressão singular, o olhar de Petrus abre frentes que permitem a Ana/Teresa e Matheus/Antônio alcançar o íntimo das respectivas interpretações. A fotografia, quase integralmente nos apresentando extensas rodovias sem fim a cortarem vastas paisagens – secas, dolorosas de ver, mas cuja apresentação prega nossos olhos à grande tela –, amplia a compreensão de um mundo gigantesco, dramático e estático, ao lado do caminhar em pulso constante dos dois personagens, em contraposição à imensidão. O ser torna-se nada, o momento do encontro com o que se busca, longínquo, senão impossível.
Uma estranha esperança insiste em nos rondar, mesmo diante do cenário deprimente. A trilha sonora nos conduz, ao lado da ternura que habita os olhares de Ana e Antônio, se apegando às quimeras restantes. Se aproximam, se afastam. O silêncio do olhar que tudo vê, a defesa de uma permissão de liberdade mútua, os medos, o desejo e o afeto. Humanidade escancarada para conexão de todos os públicos.
Sílvia Buarque
Os dois seres que levam consigo o bebê – não por acaso, sem nome – talvez nem saibam o que realmente buscam naquele quase utópico lugar que inicialmente vislumbram alcançar. Entre os poucos personagens do caminho, destaca-se Dona Vitória, com a força da veterana Sílvia Buarque, que faz da generosidade solidária uma estratégia de compensação, através do bebê, e nos atiça para mais reflexões. Quão maravilhosamente bom é ver Danny Barbosa, na pele de Letícia. Esta paraibana, com sua grandeza artística, foi vista também em “Bacurau”.
Atores comentam o próprio trabalho no filme "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho
Neste drama áspero e intrigante, tudo é contraponto, diverso, afastado daquele submundo existencial que insiste em tentar sobreviver. O roteiro segue lúcido e sem arestas. E descortina a ampla visão, através dos diálogos, que tantas vezes esbarram em perguntas ditas sem direito à resposta dos interlocutores.
O que seria a liberdade do ser, partindo de algum lugar para uma “escolha” aventureira, traz à tona os perigos da vida, a fragilidade do ser, a impotência que se fortalece num cíclico contexto de buscas, sofrimento e degradação de sonhos perdidos num tempo que se viveu ou não. Paisagens, rios poluídos, cidades desaparecidas retratam os trôpegos personagens e seus próprios trilhos, submersos em passado, ancorados em presente, desprovidos de futuro.
Luta vívida
De Ana Luiza Rios nos vêm cenas do que mais fortalece esta produção. Ao lado do aparente movimento dos personagens pelas estradas, a estagnação e a inércia da vida de cada um deles, frente aos desafios... Num tempo em que já seria vida resolvida para alguns, ambos prosseguem nas dores primárias dos aprendizados do chacra básico, a luta pela sobrevivência, a corrida contra a fome...
Tão básica quanto essa busca surge a luta vívida em Teresa diante de um mundo machista, execrável, de abusos sexuais. Se de Antônio tem a ternura do homem que ampara e insiste no cuidado com o “filho” (ainda que nos caiba a reflexão sobre os motivos dele, na acolhida paternal do bebê sem nome, que pode, metaforicamente, ser ele próprio, ou Teresa, para si própria), é ela que vai à luta para prover o trio. E é aí que, alcançando o impensável, dentro das ações para gerar algum retorno financeiro, encontra o lugar da prostituta. A essa altura, o bebê já terá nome de anjo...
Teresa protagoniza momentos tão fortes que seus próprios gritos são capazes de nos fazer descer goela abaixo a realidade hipócrita e persistente através dos tempos. A esperança que move os passos iniciais de Antônio pelas estradas é a chance ganhar a vida com caranguejos, em seu destino almejado. Como os crustáceos, parece andar para trás. Senão em círculos...
Útero imaginário
Ah! O sempre Matheus Nachtergale! Seguramente, este ator é a melhor representação da atualidade quando falamos de talento, entrega, comprometimento, verdade. Uma versatilidade estupenda, nas grandes e diversas interpretações, parece vir do útero imaginário possível deste homem que, ao lado de um masculino fazer latente, tem seu feminino bem resolvido a gerar no cerne da criatividade um sentido existencial.
Nachtergaele fecha a película, sem fechar questão. Sangra nossa capacidade de julgamento frente ao indizível, nos dá o direito de fazer justiça ou seguir com a própria condenação.
Diz-se que quando um crime é investigado, evidências como o número de golpes por armas brancas fazem avaliar acerca de autoria feminina. “Antônio, brasileiro”, homem de sonhos e verdades cruas, desalentos e desilusões, em seu movimento, grita pela voz calada de todas nós.
"MAIS PESADO É O CÉU"
Brasil, 2023, 93min. De Petrus Cariry. Com Ana Luiza Rios, Matheus Nachtergaele, Silvia Buarque, Danny Barbosa. Em cartaz nesta quarta (21/8), na sala 3 do UNA Cine Belas Artes, às 15h30. A partir de quinta-feira (22/8), o horário muda para as 20h10.
* Márcia Francisco é jornalista