Em seu terceiro longa-metragem, o diretor mineiro Rafael Conde lança um olhar para a ditadura militar no Brasil. Trata-se, no entanto, de uma mirada bem particular. Diferentemente de outros filmes que retratam o período, praticamente não há cenas de ação, truculência policial, tortura, fugas dramáticas ou desespero em “Zé”, que estreia nesta quinta-feira (29/8).
O filme é uma adaptação da história verídica de José Carlos Novais da Mata Machado, jovem líder do movimento estudantil que lutou contra a ditadura. Perseguido pelo regime, ele precisou recorrer à clandestinidade, abrindo mão de uma vida confortável para se dedicar à alfabetização e à conscientização política dos mais pobres no Nordeste. Zé é interpretado por Caio Horowicz. O elenco conta com Eduarda Fernandes, Samantha Jones, Yara de Novaes e Rafael Protzner, entre outros.
Baseado no livro homônimo de Samarone Lima, escritor cearense que investigou a vida do militante em arquivos da repressão, entrevistas com militantes contra a ditadura, familiares e amigos, “Zé” opta por um registro intimista. Nascido em março de 1946 e assassinado em outubro de 1973, o líder estudantil participou da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). O foco são os conflitos familiares e os dramas éticos e pessoais dos personagens.
Atmosfera de opressão
A despeito de evitar a dramatização excessiva com cenas de violência, o filme não se exime de colocar o espectador em uma atmosfera angustiante de opressão, em que o protagonista, perseguido e permanentemente vigiado, vê o cerco se fechar. Caio Horowicz conta que embarcou no projeto a partir de um convite algo súbito de Conde. Ainda em um período crítico da pandemia, recebeu um telefonema com o DDD de Minas Gerais.
“Era o Rafa, dizendo que tinha me visto na série 'Boca a boca', que estava produzindo um filme e que achava que eu era muito parecido com o Zé. Ele disse que também tinha recebido de uma amiga a indicação do meu nome, pediu para que eu fizesse um vídeo. Esse processo foi todo on-line. Fomos nos conhecer na véspera do início das filmagens, quando cheguei em Cataguases, em 2021”, diz, citando o cenário principal em que a trama foi gravada.
O ator observa que a história de Zé é muito marcante, muito arrebatadora, e pouca gente conhece. Isso foi, conforme diz, o que primeiro o cativou no roteiro, escrito pelo próprio Conde em parceria com Anna Flávia Dias. “O livro do Samarone é uma biografia muito detalhada, que conta a vida de Zé de uma maneira muito bonita. É uma história que só é mais conhecida mesmo em Belo Horizonte, por causa da família Mata Machado, que é muito influente”, diz.
Também chamou a atenção do ator o fato de ser um filme sobre a ditadura, mas que privilegia a vida privada do protagonista, uma instância íntima que é atravessada e contaminada por uma situação vigente. “É um filme que acontece mais entre quatro paredes. Não tem violência explícita, mas a violência está ali, implícita, e é terrível, porque é uma opressão constante no ar, que paira sobre os personagens o tempo todo”, diz.
Um elemento fundamental no roteiro são as cartas que Zé escrevia para a família e os amigos enquanto estava na clandestinidade, pedindo ajuda, dinheiro, orientações, mas com um “valor literário absurdo”, segundo Horowicz. Algumas delas foram preservadas na íntegra ou quase isso no longa. “Em diferentes momentos do filme, digo essas cartas para a lente da câmera, numa linguagem bem épica. Achei uma bela escolha do roteiro, é o material de que mais gosto”, comenta.
Essas cartas acabaram se constituindo na principal fonte de informações para que o ator pudesse compor o personagem, já que, por razões óbvias, quase não há registros em áudio ou vídeo do período em que Zé esteve na clandestinidade. “O que tem são umas poucas fotografias em 3x4, coisas de fichamento policial. Mas tive um contato muito íntimo com alguns familiares, como o irmão dele, Bernardo Mata Machado, e o filho, Dori Mata Machado, de quem fiquei amigo. Ele veio para o meu aniversário”, conta.
Na opinião do ator, esse “é um material que guarda a alma do Zé. Eu, lendo essas correspondências, era como se ele estivesse conversando comigo. Foi o que me possibilitou um mergulho profundo nessa figura, porque tem ali um jeito de pensar, de se expressar, tem uma retórica”.
Horowicz considera muito apropriado que essa história chegue agora às telas de cinema. “Zé, como muitos outros perseguidos pelo regime, teve sua história apagada depois da anistia. É uma estreia que vem muito a propósito, pensando na vida política do país. O filme serve para repensar e rever o Brasil, entender quem são as pessoas que prezam por valores caros à sociedade, o amor, o cuidado, o respeito. Acredito que pode ajudar as pessoas a votarem bem, em candidatos que pensam no bem comum, e não no próprio umbigo”, diz.
“ZÉ”
(Brasil, 2023, 120 min.) Direção: Rafael Conde. Com Caio Horowicz, Eduarda Fernandes, Samantha Jones e Yara de Novaes. Estreia nesta quinta (29/8), no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 18h30). Na sala 2, às 20h30, haverá sessão com a presença do diretor e equipe. Exibições também no Centro Cultural Unimed-BH Minas, nesta sexta (30/8), em 1º/9 e em 3/9 (Sala 2, 20h30).