Cocaína ou cetamina? A dúvida atormenta o narrador de "A história universal do after", que em determinado momento se vê cheirando uma linha de pó branco sobre a capa de um livro de poemas de Roberto Piva sem saber de qual droga se trata. Mas a pergunta é antes retórica que prática, e a resposta não importa, contanto que o personagem siga com sua consciência alterada pelo consumo de psicotrópicos.

 




É nesse estado de quase delírio que se desenrolam as cerca de 200 páginas do livro de Leonardo Felipe, um texto de não-ficção sobre as baladas de música eletrônica e seus after hours – as festas íntimas que acontecem na casa do narrador depois do fechamento das pistas de dança, a partir do nascer do dia.

 


Lançado originalmente em 2019, o livro deve ganhar em breve uma nova edição, com fotos de Ivi Maiga Bugrimenko, conhecida por registrar a noite de São Paulo. Na Argentina, "A história universal do after" teve há pouco uma nova tiragem, depois de esgotar a primeira.

 


Coletivos

Com a experiência de décadas de rolê e inúmeros pares de tênis gastos dançando techno ao longo dos anos, Felipe acompanha o surgimento e o crescimento, na década de 2010, de coletivos de música eletrônica responsáveis por promoverem festas nas ruas de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo. A ênfase maior é na cena da capital gaúcha, onde o autor vivia e na qual era ativo participante.

 


No livro, o texto passeia livremente por várias formas – reportagem jornalística, página de diário, carta, ensaio, "egotrip" e até um poema feito a partir do nome de um coletivo de festas. Há um sem fim de referências, com pensadores da psicanálise e da antropologia usados para sustentar os devaneios de um narrador sempre à beira da exaustão, causada pelas madrugadas viradas dançando.

 


A obra problematiza o discurso heroico a respeito das festas, isto é, que tenta apagar as contradições e ambiguidades manifestas nas pistas de dança, afirma Felipe. Numa conversa por telefone, ele argumenta que pessoas LGBTQIA+ podem ser bem acolhidas e se sentirem em segurança na noite eletrônica, capaz de construir um senso de comunidade muito positivo, permitindo o desenvolvimento da identidade de cada um dos frequentadores.

 


"Mas a gente não pode esquecer que isso [a festa] faz parte do jogo capitalista. A lógica da diversão acaba reproduzindo quase a lógica do trabalho. Você vai lá e tem um tempo que você vai performar aquela festa, quase como se fosse um trabalho que você tem que realizar", ele afirma, acrescentando que alguns lugares não são tão acolhedores assim para pessoas não cisgêneras, brancas e heterossexuais.

 


Espaço público

Ao se debruçar sobre os coletivos Arruaça e Goma, em Porto Alegre, e nas festas promovidas pelas turmas da Masterplano e 1010, em Belo Horizonte, e da Mamba Negra, em São Paulo, o livro entra numa questão cara à cena eletrônica das capitais na década de 2010 —a ocupação do espaço público, como no caso de uma festa de techno no centro da capital gaúcha ocorrida embaixo da estação abandonada do aeromóvel, o esqueleto de um monotrilho que nunca saiu do papel.

 


Felipe lembra que a DJ Cashu, uma das criadoras da Mamba Negra, e os mineiros do Masterplano têm formação em arquitetura, o que naturalmente influencia nas suas formas de expressão. Além de se divertir na rua, o público "está pensando em urbanismo, pensando em espaço público diante do processo de privatização desses espaços que a ordem neoliberal impõe", afirma o autor.

 


Apesar das discussões densas, "A história universal do after" tem humor, piadas e uma ironia constante. Os trechos mais leves se passam nos after hours no apartamento do narrador, momentos nos quais as drogas parecem bater mais forte pela privação de sono e de comida, além da exaustão física após horas de pista de dança.

 


Felipe afirma que o after hours é o espaço de lazer do trabalhador da noite, o momento de descanso de quem produz as festas, e também ajuda a cena a se consolidar. Nas reuniões de amigos pós-balada se comenta tudo o que aconteceu na noite, quem brigou com quem, quem ficou com quem.

 


"Uma piada que surge no after vai gerar o nome de uma festa na semana seguinte", diz Felipe, aproximando estes momentos da hora da brincadeira. "O after é completamente inútil, e nesse aspecto eu acho que ele se aproxima do jogo. É um espaço poético. É um espaço de não-produção, fora da lógica em que a gente está coagido a produzir o tempo todo. " (João Perassolo)

 


“A HISTÓRIA UNIVERSAL DO AFTER”
• Leonardo Felipe
• Editora Nunc Livros (190 págs.)
• R$ 39

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