Não era uma casa como as outras, até o carteiro sabia disso. Os livros eram em profusão. Havia um piano, roseiras na área externa, que dividiam espaço com um caramanchão. A mesa estava sempre posta e as portas abertas para amigos. Vendida em 2015, deu lugar a um prédio. Hoje, só uma placa faz menção à casa da Rua Cristina, 1.300, no Santo Antônio.

 


“Era algo mítico, um lugar referencial de literatura e poesia”, afirma a jornalista e gestora cultural Eleonora Santa Rosa, ao falar da residência dos poetas Laís Corrêa de Araújo (1929-2006) e Affonso Ávila (1928-2012). Eles construíram a casa em 1955 e ali moraram por toda a vida.

 


“Cristina 1300 – Affonso Ávila – Homem ao termo”, documentário que marca a estreia de Eleonora na direção, foi, em boa parte, rodado neste endereço. Com lançamento no próximo dia 22, no Centro Cultural Unimed-BH Minas, o longa coloca Ávila dialogando com sua obra poética.

 




Aqui, um parênteses: o subtítulo “Homem ao termo” é o nome da antologia lançada pela Editora UFMG em 2008 (ano em que Ávila atingiu os 80), que reuniu sua obra poética de 1949 a 2005.

 


Circulação da obra

“O que mais interessa é que a geração que não sabe quem foi o Affonso leia um dos poetas brasileiros mais importantes do século (20). É preciso que ele seja não só celebrado, mas que sua poesia esteja em circulação”, afirma Eleonora.

 


Ela se tornou diretora do longa (que tem codireção de Marcelo Braga) por necessidade. Não que não houvesse alternativas, mas só Eleonora poderia fazer o filme que queria. Por toda a vida, ele foi Seu Affonso, seu sogro por três décadas (ela foi casada com o jornalista e poeta Carlos Ávila). Também trabalhou bastante com ele.

 


“Foi uma convivência afetivo-familiar, de trabalho, mas sobretudo poética, pois sempre fui uma admiradora total dele”, conta. Em 2010, Ávila já apresentava problemas de saúde. “Um dia, o chamei e disse: ‘Seu Affonso, vamos começar a gravar um depoimento, estou pensando em fazer um filme.’”

 


Na casa de Ávila , Eleonora começou a gravar uma série de entrevistas com ele. “Ele abraçou o projeto, tanto que o levei para Ouro Preto (em 2011, cidade referência para Ávila, um dos maiores especialistas do barroco no Brasil), gravamos no adro da Igreja do Carmo.”

 


Ávila, segundo Eleonora, dizia que não era um homem falado, mas escrito. “Era uma pessoa introspectiva, muito fechada.” Com a intimidade que tinha com sua interlocutora, ele se abriu para a câmera. “Aparece bem humorado, divertido, as pessoas se espantam com o Affonso que está na tela.”

 


Com a morte de Ávila (de parada cardíaca, em casa, em 26 de setembro de 2012), o projeto foi interrompido. Eleonora tentou retomá-lo em 2015. Não deu certo. Os obstáculos foram se sobrepondo. Só após o fim da pandemia ela conseguiu os colaboradores e a verba para a realização.

 


“Relendo a obra poética e vendo todo o material (gravado) de novo, fiz um argumento, depois um roteiro e montei a equipe que queria”, diz.

 


“Não queria um documentário comum, nem familiar, com um monte de críticos e amigos falando dele. Também não abordaria, do ponto de vista formal, a questão do ensaísta do barroco (em 1969, Ávila fundou a revista “Barroco”, referência na história da arte no país). Claro que elementos do barroco estão ali, mas seria sobre o Affonso poeta.”

 


Desta maneira, o filme resulta em Ávila em “simbiose com sua poesia”, explica Eleonora. “Ele fala poesia muito bem. Coloco poemas de diferentes fases, poemas encadeando um com o outro, de acordo com o tema que está na tela.” Não há ninguém mais em cena além do próprio Ávila. Eleonora aparece em alguns momentos, em algum diálogo com ele.

 


A própria diretora faz a narração do filme. Outra voz que se ouve é a da atriz Vera Holtz, que recita fragmentos de poemas de Ávila no início e no final do longa. “É um filme inteiro calcado no poeta e na poesia. E vemos como ela é contemporânea e atemporal”, comenta Eleonora.

 

O último poema

A cada novo poema, Affonso Ávila utilizava o mesmo procedimento. Depois de ele próprio o datilografar, pedia que alguém o digitasse. Em um terceiro movimento, mostrava para as pessoas que lhe eram próximas. Em boa parte das vezes, sua família.

 


Foi assim que Myriam, a segunda dos cinco filhos, conheceu “Cromo”, que se tornou o último poema de Ávila. Os versos que tratam de memória, registro e desgaste ganharam uma edição em livro-objeto. Com lançamento nesta quarta (14/8), na Quixote, “Cromo” nasceu por iniciativa do professor de literatura e editor Miguel Javaral, um dos oito netos de Ávila.

 


“Pouco depois de passar o poema para minha mãe, ele foi internado. Pediu que ela o lesse para ele (no hospital). É um poema que tem muito a ver com o último momento de vida dele”, diz Javaral. Um dos sócios da SQN Biblioteca, de edições artesanais, ele se uniu ao parceiro, o designer Preto Matheus, para a criação.

 


“É uma edição pensada como que respondendo ao poema. Há uma epígrafe, do poeta espanhol (Rafael) Alberti, que fala do amarelo acetinado cromo. Essa é a cor da capa. No poema ele fala de um cromo sem cor e relevo. O Matheus bolou um jeito de o nome aparecer em um espaço negativo, sem cor”, explica Javaral.

 


“CRISTINA 1300 – AFFONSO ÁVILA – HOMEM AO TERMO”
Lançamento do documentário. Quinta-feira (22/8), às 20h, nas duas salas do Centro Cultural Unimed-BH Minas, Rua da Bahia, 2.244, Lourdes. Após a sessão, haverá debate com a equipe. Na sexta (23/8), o filme entra em cartaz no mesmo cinema.


“CROMO”
• Livro-objeto de Affonso Ávila
• SQN Biblioteca
• R$ 80
• Lançamento nesta quarta (14/8), às 19h, na Quixote Livraria (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi).

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