Flavia Renault nasceu no Rio de Janeiro e mora em São Paulo – terra de seu pai – desde a juventude, mas o manancial que abastece sua arte emana de Minas Gerais, de onde é sua família materna. Com um currículo que registra importantes exposições na capital paulista e em Portugal, somente agora ela inaugura a primeira individual em Belo Horizonte, a partir desta sexta-feira (16/8), no Centro Cultural UFMG. Intitulada “Roda das deidades”, a mostra fica em cartaz até 22 de setembro.
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“Dá um frio na barriga. É uma grande responsabilidade apresentar meu trabalho num lugar pelo qual tenho tanta admiração, um estado que reverencio e que me alimenta muito”, diz Flavia, que é sobrinha de Claudia Renault, também artista visual e professora da Escola Guignard. Ela conta que sua relação com Minas Gerais vem da infância, quando passava as férias na casa da avó. Foi lá, conforme diz, que teve seu primeiro encontro com a arte e com a fé, da qual seu trabalho é impregnado.
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“Na época de Natal, tinha um presépio maravilhoso, que podia estar em uma bienal, em torno do qual a família, que é muito religiosa, rezava por uma hora. Era mágico. Nós não nos dávamos presentes, em vez disso comprávamos cobertores, que, no inverno, eram doados para quem estava nas ruas”, diz. Ela destaca que Claudia Renault e os irmãos e irmãs de sua mãe também estão na raiz de seu fazer artístico. É graças a essa origem que seu trabalho guarda uma estreita conexão com o barroco mineiro.
Pensamento místico
Flavia diz que entende o barroco como um jeito de pensar, e não apenas pela questão plástica. “É um estilo que dá voltas, e acho que tem essa coisa circular na minha arte, um pensamento meio místico, uma ligação com o invisível. Comecei a me envolver com a arte a partir desse barroco, que se relaciona com o cosmos, com o etéreo, com um jeito de pensar que não é linear. A exposição traz muito disso, porque é como meu pensamento funciona”, ressalta.
“Roda das deidades” reúne 24 obras, entre esculturas, instalações, objetos e desenhos, com várias delas dispostas em séries. A principal, que dá nome à exposição, é um conjunto de sete peças feitas de pano de chão e algodão cru, em escala humana, sustentadas por cabides e que, juntas, compõem uma instalação. A mostra se completa com nove desenhos, feitos sobre antigos documentos recortados do acervo de sua família; cinco livros com as capas feitas de madeira, como se estivessem trancados em gavetas; e outros objetos avulsos.
Todas as obras são recentes, criadas a partir de 2022, mas como desdobramentos de elementos e ideias com que Flavia trabalha há mais tempo. “Acho que a arte tem vida própria e quer usar o artista para estar no mundo. Ela nasce e se desenvolve como o rio brota da fonte e corre em seu leito. As deidades nasceram mais tímidas, penduradas no cabide, e depois tomaram corpo, ganharam vida”, pontua.
Desenhos em documentos
Sobre a série de desenhos, que ela batizou como “Organos”, porque são recortes que se assemelham a órgãos, ela diz que resulta de um pensamento remoto. “São documentos antigos. Demorei para ter coragem de mexer no inventário do meu avô. Amo guardar coisas antigas, sou coletadora e colecionadora. Desenvolvi os 'Organos' em 2022. Esses desenhos têm um excesso, assim como o barroco tem”, comenta.
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Ela observa, a propósito, que o diálogo que as obras estabelecem entre si tem a ver com essa essência barroca que impregna seu trabalho. “Tem esse lugar das entrelinhas, do limbo, daquilo que não é falado, que está velado. A exposição se situa nesse lugar que ainda não sabemos nomear, a percepção de algo meio invisível, metafísico. Os cabides com as tetas, onde estão essas tetas? Tem a ver com o feminino? Com fertilidade? Com abundância? Tudo pode estar lá, mas nada é explícito”, diz.
Flávia usa como imagem uma porta entreaberta, através da qual é possível ver um pouco, mas sem identificar exatamente o que está do outro lado. Ela destaca que é um mistério também presente na arte barroca. “O conjunto das obras na exposição carrega uma esperança em algo que é invisível e, assim como no barroco, tem um quê de dor, mas uma dor da qual surge uma possibilidade. Minas é o lugar onde mais me encontro a mim mesma. Tem o sertão, com a secura, o retorcido, e tem a esperança da vereda”, diz.
Cartas de Santos Dumont
Se a artista se identifica como coletadora e colecionadora, isso também é uma herança dos tios. Ela conta que todos eles tinham “coleções maravilhosas”, que, no entanto, ficavam reservadas, protegidas de olhos curiosos. “Claudia tem uma coleção que só aumentou com o tempo, com muitas coisas do Jequitinhonha. Meu tio Afonso guardava cartas que meu avô trocava com Santos Dumont, de quem era amigo. Todos eles tinham coleções, mas normalmente eu não tinha acesso, não podia entrar nos quartos para ver”, recorda.
Ela conta que imaginava os tios embaixo da terra, sob as montanhas que via ao longo das estradas mineiras, segurando lampiões e procurando aquelas coisas todas que colecionavam. “Em uma das primeiras vezes que meus filhos viajaram comigo para Belo Horizonte, o caçula, que tinha 16 anos, falou que entendia totalmente de onde vem meu trabalho. Ele conseguiu perceber o fio da meada. Acho que não só o artista, mas qualquer pessoa, tem a obrigação de viver artisticamente a vida, porque a gente só sabe desta. O mineiro faz isso bem”, ressalta.
Bate-papo e visita guiada
A abertura da mostra, nesta sexta-feira, às 19h, vai contar com bate-papo de Flavia Renault com o público e visita guiada. Ela estará acompanhada pela curadora da exposição, Paula Borghi, que é mestre e doutoranda em artes visuais na linha de pesquisa “História e crítica da arte”, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. De acordo com a curadora, “os objetos expostos, desde amuletos até heranças familiares, carregam significados profundos e pessoais, revelando a habilidade da artista em transformar elementos comuns em obras de arte cheias de energia espiritual”.
“RODA DAS DEIDADES”
Exposição de Flavia Renault. Abertura nesta sexta-feira (16/8), às 19h, no Centro Cultural UFMG (Av. Santos Dumont, 174, Centro). A mostra fica em cartaz até 22 de setembro e pode ser visitada de terça a sexta, das 9h às 20h; sábados, domingos e feriados, das 9h às 17h. Entrada gratuita.