Nas aulas que ministrava na Universidade de Zurique, o ensaísta brasileiro Eduardo Jorge de Oliveira costumava entregar aos alunos dois poemas, um de Camões e outro do belo-horizontino Ricardo Aleixo. Sem indicar a autoria de cada texto, pedia para os alunos identificarem os devidos autores.

 


“A turma demorava um pouco para reconhecer”, lembra Oliveira. “Isso mostra que a maneira como Aleixo manipula o texto e o trabalho artesanal e lírico dele se aproxima em alguma medida de Camões”, compara.

 

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Além dos aspectos estéticos citados pelo ensaísta, existe outro ponto de conversão entre o mineiro e o principal poeta da língua portuguesa: a presença do conceito de “máquina do mundo”, que se refere a uma visão complexa e ordenada da realidade, associada à ideia de sistema universal que regula e dá sentido à existência.

 



 


Poetas como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Haroldo de Campos (1929-2003) também traduziram tal conceito. E é isso que Oliveira pretende mostrar no livro “O mundo a zero: Drummond, Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo e as máquinas do mundo”, que será lançado neste sábado (17/8), pela Editora UFMG, na Papelaria Mercado Novo. Na ocasião, Ricardo Aleixo vai conversar com o autor.


Literatura e amizade

 

“Somos dois amigos que se aproximaram por conta da literatura e que vamos conversar sobre literatura”, diz Aleixo sobre o bate-papo de hoje.

 


Ao longo de 349 páginas, “O mundo a zero…” explica a relação dos poetas brasileiros com a “máquina do mundo”, lembrando que o termo foi incorporado à língua portuguesa por Camões. Em “Os Lusíadas”, o português tratou a “máquina do mundo” como ideia de destino, mecanismo ordenado pelo poder divino que guia os heróis.

 


Contudo, tal ideia transcendeu Camões e se disseminou no Brasil pela poesia de Drummond, Haroldo de Campos e Aleixo. “Quando a gente fala de ‘máquina do mundo’ em língua portuguesa, a referência é Camões. Mas Drummond quase arranca isso de Camões, criando algo extremamente novo com a ‘máquina do mundo’ dele, que é mais enigmática e onde ele questiona a condição humana”, aponta o ensaísta, lembrando que, além de publicar em “Claro enigma” (1951) o poema “Máquina do mundo”, Drummond dedicou um capítulo inteiro do livro ao conceito.

 

 


Haroldo de Campos, por sua vez, interpreta a “máquina do mundo” de maneira metafísica, desconstruindo a realidade e explorando a relação entre linguagem e o cosmos, conforme escreveu no ensaio “A máquina repensada” (2000). Campos faz uma crítica e uma releitura de Camões, trazendo reflexões sobre linguagem, estrutura da realidade e poética contemporânea.

 

Angústia desfeita

 

Já Ricardo Aleixo, que publicou “Máquina zero” em 2004, tem certo paralelo com Drummond no sentido de ser uma espécie de contraponto do itabirano. “Enquanto o Drummond está lá com o sentimento do mundo, completamente angustiado com a herança escravagista; o Aleixo, que também compartilha da herança escravagista, está numa outra ponta. Ele desfaz essa angústia entrando com uma produção poética cheia de alegria”, analisa Oliveira.

 

Ricardo Aleixo participa do lançamento de "O mundo a zero", das 12h às 15h, na Papelaria Mercado Novo

Marcos Vieira/EM/D.A Press


Aleixo não concorda com a análise. Tampouco discorda, uma vez que “poesia e literatura são lugares da alteridade”, diz ele. “O interpretante da obra tem todo o direito de ler como o repertório dele sugerir. Não me cabe questionar o que o outro lê, a menos que seja uma aberração, que a interpretação seja muito ampla, o que não é o caso aqui”, afirma.

 


“O mundo a zero…”, conforme escreveu o escritor e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora Edimilson de Almeida Pereira em sua análise da obra, “consiste, teoricamente, numa viagem às viagens que outros realizaram para confeccionar um certo modelo de mundo. Diferentes em suas personalidades, vincados por perdas e aquisições, esses autores pensam o mundo que tivemos e sondam o mundo que, talvez, devêssemos construir”.

 

 


Daí o “zero” do título. Ao comparar o modo como cada poeta retrata a “máquina do mundo”, Oliveira apresenta o que restou da totalidade apresentada por Camões e provoca o leitor com a pergunta: “É possível zerar o mundo através da poesia e da linguagem?”.

 


“Prefiro deixar essa pergunta em aberto”, diz o autor ao ser questionado sobre a hipótese que ele mesmo levanta. “Deixando essa pergunta em aberto, a gente tem um esforço comum de levar ao que Roland Barthes chamava de ‘grau zero da escrita’. Não sei se o mundo pode ter um grau zero, mas acredito que, no momento em que o poeta ou a poeta se esforça para isso, ele pode suspender o sentido do mundo, ainda que seja por segundos, por estilhaços de sentido”, conclui.

 


“O MUNDO A ZERO: DRUMMOND, HAROLDO DE CAMPOS, RICARDO ALEIXO E AS MÁQUINAS DO MUNDO”


• De Eduardo Jorge de Oliveira
• Editora UFMG (349 págs.)
• Lançamento neste sábado (17/8), das 12h às 15h, na Papelaria Mercado Novo (Av. Olegário Maciel, 742, Loja 2173, Corredor J, Centro). Exemplares à venda por R$ 69, no dia do lançamento e pelo site editoraufmg.com.br

 

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