Não há como falar em cinema brasileiro sem falar em “Cidade de Deus” (2002). Pela primeira vez, se viu um filme de favela com atores desconhecidos vindos da favela interpretando personagens criados por um ex-morador de favela. O ritmo e a inteligência com que Fernando Meirelles e Kátia Lund contaram a história, escrita por Paulo Lins, de personagens envolvidos com o tráfico ou expostos às consequências da criminalidade, virou febre.

 

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“Cidade de Deus” levou quase 3,5 milhões de pessoas aos cinemas. Depois veio o mercado internacional, as quatro indicações de “City of God” ao Oscar em 2004. Com estreia neste domingo (25/8), na HBO e Max, a série “Cidade de Deus: A luta não para” não renega (nem poderia) tal passado. Mas olha aquele ambiente e seus personagens sob outro prisma.



Assim como no filme, é Buscapé (Alexandre Rodrigues) o narrador. Vinte anos após os acontecimentos do longa, estamos em 2004. Ele é fotógrafo respeitado, o único capaz de ir para o morro e emplacar imagens nas capas dos jornais. Para os colegas, é Wilson. Mesmo que more em Copacabana, continua sendo Buscapé na CDD, como os moradores chamam a favela.

 

 



 


O primeiro episódio localiza os personagens, inclusive trazendo imagens do filme original. Outras figuras importadas do longa são Barbantinho (Edson Oliveira), agora líder comunitário com intenções políticas, e Berenice (Roberta Rodrigues), mulher forte que dá conta de tudo, inclusive de impedir que os jovens entrem para o crime.

 

Roberta Rodrigues está de volta como Berenice, mulher forte que luta para tirar os jovens do tráfico

Max/reprodução

 

Bandido e pai exemplar

 

O “dono” do morro é Curió (Marcos Palmeira), que, a despeito da vida criminosa, é marido e pai exemplar. A vida segue mais ou menos nos conformes até que Bradock (Thiago Martins) sai da cadeia. Martins interpretou esse personagem no filme, só que ele se chamava Lampião. A família do verdadeiro Lampião não queria que se utilizasse o nome, então ele foi trocado para Bradock.

 


Considerado um filho por Curió, Bradock quer de volta seu lugar de comando no grupo. O chefe diz não. É uma ação de Jerusa (Andreia Horta), companheira de Bradock, que vai detonar nova guerra no morro. Paralelamente, a trama acompanha o crescimento das milícias.

 

Aly Muritiba, diretor-geral de "Cidade de Deus: A luta não para" também dirige a elogiada série "Cangaço novo"

 


Produtora do filme, a O2 (que tem Fernando Meirelles como sócio) também produz a série. Aly Muritiba assina a direção-geral. Ele diz que consultou Meirelles, que acompanhou o processo, mas dando “liberdade total”. Muritiba voltou ao filme original várias vezes. “É incrível como ele continua revolucionário, contemporâneo e brilhante”, comenta.

 


Mas quis fazer diferente. “Na sala de roteiro, a gente percebeu que teria que mudar um pouco o foco para as narrativas femininas, que têm muito mais a ver com a história global que queríamos contar”, diz Muritiba.

 


“A gente queria contar a história de uma comunidade que resiste, que existe e que luta. E a história da resistência nas comunidades é predominantemente feminina. Pegamos figuras femininas que existem e demos corpo, voz, espírito, desejo, fazendo com que a existência dessas mulheres não estivesse atrelada à presença masculina”, acrescenta Muritiba.

 

Território proibido

 

As filmagens da favela foram realizadas em São Paulo. “A Zona Oeste carioca (onde a CDD está localizada) estava, e ainda está, infelizmente, conflagrada. É nesta região do Rio que existem as comunidades horizontalizadas, como a Cidade de Deus. Só que no começo da pesquisa estourou uma puta guerra entre o crime organizado e a milícia, então ficou perigoso filmar lá”, diz Muritiba.

 

 

 


Roberta Rodrigues faz uma Berenice lutadora, que não se submete a ninguém. “Mais do que guerrear, ela enfrenta a vida, pois é a forma que tem para sobreviver. É uma mulher que pensa muito nessa comunidade. É mãe, tem um parceiro incrível, mas deixa muito claro que quem manda é ela”, diz a atriz, egressa do grupo teatral Nós do Morro, do Morro do Vidigal, que estreou no cinema em “Cidade de Deus”.

 


A Jerusa de Andreia Horta é outra mulher resolvida, ainda que seus interesses sejam exclusivamente próprios. “É uma Lady Macbeth contemporânea”, define a atriz, que fez pesquisa sobre mulheres expoentes do tráfico – “há algumas muito jovens, belas, cheias de joias” – para compor a personagem, “diferente de todas que já fiz”.

 

Andreia Horta fez o papel de Elis Regina no cinema

 

“A Jerusa não tem a menor empatia pelos outros, representa a estrutura apodrecida dos poderes paralelos, da política”, continua Andreia, que tinha 19 anos quando assistiu ao filme. “Estava na faculdade de artes cênicas, fazendo teatro em São Paulo, e foi um arrebatamento, pois não tinha visto no cinema brasileiro aquela linguagem de atuação.”

 

"Dinossauro" analógico

 


Buscapé, de certa forma, representa o homem em crise. “Ele se transformou em um dinossauro”, diz Alexandre Rodrigues, criado no Morro do Cantagalo, favela da Zona Sul carioca. “Está parado na transição da fotografia analógica para a digital”, acrescenta ele. Há muitas cenas do personagem na sala escura revelando imagens da favela.

 

Alexandre Rodrigues, o Buscapé do filme, agora é fotógrafo respeitado, que registra a guerra nos morros cariocas

Max/reprodução

 


Na vida pessoal, Buscapé também tem dilemas. Não aceita que a filha adolescente, Leka (Luellem de Castro), seja funkeira, com carreira ascendente como MC. Vive sozinho em seu apartamento, enquanto a menina é criada pela avó na comunidade.

 

“(No filme) Só sabíamos que ele era um menino com o sonho de ser fotógrafo e era o DJ da galera. A série dá a possibilidade de destrinchar um pouco melhor o Buscapé”, finaliza Rodrigues.



“CIDADE DE DEUS: A LUTA NÃO PARA”


Série em seis episódios. O primeiro estreia hoje (25/8), às 21h, na HBO e Max. Novos episódios aos domingos.


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