O amarelo dá o tom da mostra “Arte subdesenvolvida”, em cartaz no CCBB-BH, a partir desta quarta-feira (28/8). É uma referência sutil ao seminal “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, no qual a autora relaciona a cor com a fome.

 


Coincidentemente, é também, ao lado do verde, uma das cores que representa um Brasil que, por cinco décadas, foi classificado como subdesenvolvido pelos estrangeiros – o país, diga-se, ainda vive com alarmantes índices de pobreza e desigualdade social; entretanto, agora, eufemisticamente, passou à categoria de “país em desenvolvimento”.

 




A mostra “Arte subdesenvolvida” demonstra como artistas cuja produção remonta às décadas de 1930 a 1980 encararam tal condição de subdesenvolvimento. Montada ao longo do terceiro andar do CCBB, a exposição reúne pinturas, desenhos, filmes, fotos e instalações de quase 40 artistas. Entre eles, Cândido Portinari, Abdias Nascimento, Carlos Vergara, Lygia Clark e Paulo Bruscky.

 


“Percebemos que na história da arte brasileira existia certa continuidade de pensamento ao longo dessas décadas”, afirma o pesquisador e curador Moacir dos Anjos. “Era uma tentativa de refletir sobre essa condição de desenvolvimento a partir do campo da arte, mas, ao mesmo tempo, atravessando outras questões, como a educação, a política e o social”, diz.

 


Módulos temáticos

Simulando essa continuidade de pensamento citada pelo curador, “Arte subdesenvolvida” se divide em cinco módulos que seguem uma linha cronológica. No primeiro, batizado de “Tem gente com fome” em referência ao poema homônimo de Solano Trindade, estão telas de Portinari e Lula Cardoso Ayres que retratam camponeses em sua labuta diária.

 


Elas ladeiam uma comovente escultura: “A fome e o brado”, de Abelardo da Hora, que traz no bronze uma família de retirantes famintos, com semblante sofrido e ossos aparecendo sob a pele, diante de uma mão estendida que clama por esmola.

 


Mais adiante, Raquel Trindade aparece em um telão, declamando o poema do pai, que dá nome ao primeiro espaço da exposição. “Tantas caras tristes / querendo chegar / em algum destino / em algum lugar / Trem sujo da Leopoldina… parece dizer / tem gente com fome / tem gente com fome / tem gente com fome”, repete a artista no vídeo.

 


No segundo módulo, “Trabalho e luta”, as obras de Wellington Virgolino e Zé Cláudio, entre outros artistas, fazem um panorama da década de 1950. Na contramão do costume da época de pintar figuras geométricas, rígidas e abstratas, tendo como foco a construção de um ideário estético; Virgolino e Zé Cláudio trazem para o centro a classe trabalhadora. São telas de pescadores à beira do rio, peões laçando um boi, uma lavadeira.

 


Terceiro e quarto módulos, “Mundo em movimento” e “Estética da fome”, respectivamente, concentram-se no período de transição do regime democrático para a ditadura militar que se instaurou no país a partir de 1964. Nesses dois espaços, chama a atenção o início de um período de efervescência cultural, que vai se consolidar depois do golpe civil-militar.

 


É nesse período que o Movimento de Cultura Popular surge no Recife e o Centro Popular de Cultura é criado no Rio de Janeiro para promover peças teatrais, festivais de cinema e a publicação de livros. Toda essa produção se reúne em umas das salas mais soturnas da mostra.

 


Tais movimentos, no entanto, foram diluídos depois do golpe. Com a ditadura já consolidada e a censura estabelecida como via de regra do regime, a classe artística (pelo menos, a maior parte dos artistas) se inconformou e passou a desafiar o poder, conforme mostra o quinto e último módulo, “O Brasil é meu abismo”.

 


Foi nessa época que Gilberto Gil e Caetano Veloso, integrando o grupo Doces Bárbaros com Maria Bethânia e Gal Costa, subverteram o famigerado slogan do regime (“Brasil – Ame-o ou deixe-o!”) com os versos “ame-o e deixe-o”, da música “O seu amor”, cuja letra está nas paredes deste último espaço.

 


Há ainda registros de performances de Lygia Clark contra a censura, cartuns de Henfil e equações matemáticas feitas por Anna Bella Geiger, nas quais os fatores não são números, mas países e continentes, emulando uma geografia partida.

 


“A exposição oferece essa leitura da arte brasileira que não é a leitura mais consagrada”, observa Moacir dos Anjos. Trata-se, segundo ele, de uma interpretação que traz para o campo da arte toda uma documentação de movimentos educacionais e literários que, supostamente, estariam fora desse campo artístico.

 


“O Brasil ainda não superou alguns dos problemas mais graves que o definem desde a época colonial. A violência se instalou no país e foi se reproduzindo de forma diferente ao longo dos séculos. E um jeito bom de lidar com isso é pela arte, como foi feito nas décadas passadas e como vem sendo feito também agora, com artistas mais jovens que, de alguma forma, estão retomando essa tradição de produzir obras mais políticas e engajadas”, conclui.

 

Instalação no pátio

Um dos exemplos de uma nova geração de artistas engajados é o mineiro radicado em São Paulo Randolpho Lamonier. A convite de Moacir dos Anjos, ele criou uma instalação que ocupa todo o pátio interno do CCBB.

 

Em bandeiras, quadros de led e auto-falantes, ele escreveu (ou narrou) os sonhos de vida de pessoas comuns. Involuntariamente, essas pessoas traçam paralelos muito próximos com os brasileiros de quase meio século atrás.

 

Seus principais sonhos hoje são ter um lugar para morar, dignidade no trabalho, comida na geladeira e amigos por perto. São realidades que quebram o eufemismo do conceito de “país em desenvolvimento”.


“ARTE SUBDESENVOLVIDA”
Exposição com obras de Cândido Portinari, Abdias Nascimento, Carlos Vergara, Lygia Clark e Paulo Bruscky, entre outros. Em cartaz no CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários), até 18 de novembro, de quarta a segunda-feira, das 10h às 22h. Entrada franca, mediante retirada de ingresso na bilheteria ou pelo site. Mais informações: (31) 3431-9400.

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