Por muito tempo de sua carreira, décadas, na verdade, a instrumentista, compositora e arranjadora paulistana Léa Freire foi a única mulher na sala. “Em entrevistas, me perguntavam se eu era mulher de quem. ‘Não estou transando com ninguém, só toco flauta’.

 



Na época, para fazer parte de um conjunto, você tinha que ser namorada de alguém”, afirma ela, hoje com 67 anos. Dura na queda, em dado momento ganhou o apelido Sargento Freire. “Era necessário.”

 


Sua trajetória, com muitos pontos fora da curva, foi registrada por Lucas Weglinski no documentário “A música natureza de Léa Freire”. O longa terá sessão comentada neste sábado (31/8), no Centro Cultural Unimed-BH Minas, com presença da própria Léa. Antes, no entanto, ela tem outro encontro com o público. Nesta sexta (30/8), é convidada do quarteto Toca de Tatu, em apresentação com entrada franca, no Conservatório UFMG.

 


Léa estudou piano erudito dos 7 aos 16 anos. Ao descobrir a flauta, se apaixonou pelo instrumento. Bem jovem, na década de 1970, passou a tocar na noite paulistana, em clubes e bares da Praça Roosevelt e da Rua Augusta. Neste ponto, sua trajetória se encontrou com a de nomes como Alaíde Costa, Filó Machado, Manezinho da Flauta, Zimbo Trio e Originais do Samba.

 


A relação com Alaíde foi bem próxima. Sem apoio da família, Léa morou um período na casa da cantora da bossa nova. Pagava as contas como professora de música. No final dos anos 1970, foi para os Estados Unidos. Os planos eram ficar dois anos em Boston, estudando na prestigiosa Berklee College of Music. Ficou duas semanas na escola.

 


Falta de paciência

“Tinha ensembles (conjuntos) de música contemporânea e rapidamente descobri que eu podia fazer qualquer coisa, porque ninguém sabia o que estava acontecendo. Isso não tem graça nenhuma. Tentei fazer tudo o que estava escrito. Mas nos livros da aula de samba (os compassos) eram um quatro. E samba é em dois, entendeu? Fiquei sem paciência”, conta Léa, que se mudou para Nova York.

 


“Eu ficava na escadaria do Village Vanguard (lendário clube de jazz) porque era muito caro ficar lá dentro para os dois sets. Então pagava um e o outro assistia da escada. Você via os craques, Bill Evans, Ron Carter, monstros. E só de ver um cara desses tocando você aprende 347 coisas. Mas um ano e meio depois eu lembrei que gostava mesmo era de música brasileira.”

 


Esta primeira parte da trajetória de Léa é contada, em boa parte, por ela mesma, com uma voz em off que acompanha imagens de época (há muitos registros em Super-8 feitos na infância pelo pai dela) e alguns depoimentos atuais, de Alaíde Costa e Filó Machado entre eles.

 


Nos anos 1980, Léa continuou sua carreira na música, teve dois filhos. Até que, por uma década, deixou a música de lado e passou a trabalhar como diretora financeira. Retornou em meados de 1990. O ano de 1997 marca o nascimento do selo e da editora Maritaca, que Léa lançou para se dedicar à música instrumental brasileira. Já foram lançados mais de 50 álbuns, trabalhos de nomes como Arismar do Espírito Santo, Banda Mantiqueira e Nailor Proveta.

 


“Continuei sendo a única mulher na sala, porém eu era a chefe”, conta Léa. O Maritaca também veio com o desejo de lançar trabalhos de mulheres instrumentistas. O documentário acompanha esse ponto de virada, trazendo o depoimento de compositoras e arranjadoras de gerações mais jovens que se espelharam no pioneirismo da retratada.

 


Na atualidade, existem várias mulheres na sala, mas Léa afirma que este movimento só se concretizou de aproximadamente cinco anos para cá. “Mas hoje as coisas são diferentes. Quando eu tinha 20 e poucos anos, se queria saber o que era maracatu tinha que ir para Recife para fazer a pesquisa. E hoje a música também está na universidade. Muitas federais acolheram a música popular, um ranço (entre erudito e popular) que foi resolvido no século passado no Hemisfério Norte.”

 


Este tema é essencial para entender a criação de Léa Freire. O jazz a considera erudita e vice-versa, como que a colocando em um não lugar. “Faço questão de estar neste não lugar desde menina”, afirma. Um marco recente em sua trajetória é o álbum “Cartas brasileiras” (2007), com 10 composições de Léa que unem a música erudita e a canção popular.

 


Falsas fronteiras

“Essas falsas fronteiras, se é erudito, se é popular... É tudo uma bobagem, uma perda de tempo absoluta. Dizer que só a elite pode ir na Sala São Paulo?”, afirma Léa, que no passado tocou para menores na extinta Febem e, mais recentemente, como o filme mostra, atuou no Projeto Guri, de formação musical para crianças e adolescentes.

 


“O filme é do Lucas (Weglinski) e traz um recorte da minha vida. Em torno disso, fala-se sobre um monte de coisas: geografia, política, sociologia, de pessoas maravilhosas como a Alaíde Costa, o Filó Machado e também a Orquestra da Unicamp, a Rua Augusta. Não acho que seja um filme sobre a Léa Freire, mas sobre seu entorno histórico. Acho que por isso é tão emocionante”, comenta.

 


LÉA FREIRE
Nesta sexta (30/8), ela é a convidada do grupo Toca de Tatu. A apresentação será às 19h30, no Conservatório UFMG, Avenida Afonso Pena, 1.534, Centro. Entrada franca.

 

“A MÚSICA NATUREZA DE LÉA FREIRE”
(Brasil, 2022, 99min., de Lucas Weglinski) – O documentário será exibido neste sábado (31/8), às 20h, no Centro Cultural Unimed-BH Minas. A sessão será seguida de debate.

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