Escritor, ambientalista e defensor dos direitos dos povos originários, o indígena Ailton Krenak foi o homenageado no Fliparacatu, em Paracatu -  (crédito: GUSTAVO WERNECK/EM/D.A PRESS)

Escritor, ambientalista e defensor dos direitos dos povos originários, o indígena Ailton Krenak foi o homenageado no Fliparacatu, em Paracatu

crédito: GUSTAVO WERNECK/EM/D.A PRESS

Paracatu– “Tudo que fere a terra, fere também os filhos da Terra”. As palavras escritas há 170 anos pelo chefe Seattle, do povo Duwamish, em carta ao presidente Franklin Pierce, dos Estados Unidos, são repetidas diariamente, como um mantra, pelo escritor indígena Ailton Krenak, imortal da Academia Brasileira de Letras, da Academia Mineira de Letras e autor homenageado no Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu), encerrado no último domingo na cidade na Região Noroeste de Minas.

 

“Frase maravilhosa”, ressalta o ambientalista residente em Resplendor, “numa curva do Rio Doce”, que anuncia para 2025 uma exposição de seus desenhos inspirados na natureza, na Pinacoteca de São Paulo (SP).

 


Com a bandana do seu povo na cabeça e muitas “Ideias para adiar o fim do mundo”, título de um dos seus livros mais conhecidos, o escritor que não cursou faculdade, nunca se filiou a partido político e nem tem religião, declara: “Somos o corpo da Terra. Filhos da Terra, que é maior do que você e eu. Então, o que acontece com a Mãe-Terra afeta todos nós. Estamos criando uma erosão no planeta e na qualidade de vida, abrindo espaço para as doenças produzidas por nós mesmos, pela exploração econômica”.

 

A conversa com Ailton Krenak começa no hotel em que esteve hospedado no final de semana – num canto do saguão, há o cenário perfeito formado por espelho d’água, cascata e jardim vertical de samambaias, que ele imagina agora como “uma floresta intrépida” do Amazonas. “Precisamos habitar a Terra com o contentamento de viver. E de conviver. Ninguém deve chamar demônios para desfrutar de um jardim, não é mesmo? Então, se algo acontece ao planeta, todos nós temos responsabilidade, não adianta transferir a culpa”.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 


Olhando para o verde das plantas bem-cuidadas, o escritor volta a falar sobre a carta do cacique Seattle, entremeia a frase com uma poesia do também mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e cita uma canção eternizada na voz de Milton Nascimento.

 

 

O chefe Seattle escreveu a carta quando o presidente norte-americano manifestou o interesse de comprar o território onde vivia seu povo. “Como vender uma terra se ela é parte de nós?, pergunta Krenak, ambientalista de corpo e alma e ativista pelos direitos dos habitantes originários, lembrando um dos trechos escritos pelo cacique Seattle. “Toda essa terra é sagrada para o meu povo”.

 

Os escritores Ailton Krenak, conceição evaristo  e Jeferson Tenório

Os escritores Ailton Krenak, conceição evaristo e Jeferson Tenório conversam com estudante no Largo do Rosário, em paracatu, onde participaram de festival literário

GUSTAVO WERNECK/EM/D.A PRESS


Palavras iluminadas


Ao citar o líder indígena norte-americano, o mineiro fala da sua extrema preocupação, hoje, com a exploração do petróleo e todas as atividades extrativistas. “Estão ‘comendo’ a Terra de forma veloz e indiscriminada, com a mineração, a devastação das florestas, a exploração do petróleo” Em seguida, olhando para seus pés e depois encarando o repórter, observa: “Tudo vem do petróleo...o celular, possivelmente a sandália que estou usando (sintética), os seus óculos, seu boné. Hoje, ninguém escapa, nem as comunidades indígenas. Depois não adianta pensar em viver em outro planeta”.

 

Enquanto fala sobre suas preocupações planetárias e as ameaças constantes, como a fumaça dominando várias regiões do país em decorrência de incêndios, Ailton se deixa abraçar por uma mulher que, após pedir licença, interrompe a entrevista. Segundos depois, emocionada, sai chorando e conta ser sempre assim quando o encontra. Paralelamente, dois casais trazem os livros adquiridos na livraria aberta durante a Fliparacatu e pedem autógrafo, e, como é tradicional, o autor faz um desenho na página antes de assinar seu nome.

 


“Desculpa”, ele se dirige ao repórter após a interrupção. Achando que a cena causou algum nervosismo, brinca: “Não está com síndrome de Elon Musk, não, né?”, referindo-se ao polêmico e bilionário empresário agora às turras com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes.

 

O assunto volta ao seu curso com o nome de Carlos Drummond de Andrade, “meu escudo invisível”, observa, e a citação do poema “O homem; As viagens”, considerado profético diante da ideias mirabolantes de que, esgotadas as fontes fósseis por aqui, estará na hora de colonizar outros planetas.

 

“Pensam em outro mundo, quando se esquecem de conviver. Mineração só dá uma safra, um dia a casa cai. Drummond viu o Pico Cauê virar uma cratera, em sua ‘aldeia’, sua terra natal, Itabira, e escreveu esse poema”. Um trecho diz o seguinte: “Restam outros sistemas fora do solar a col-Onizar. Ao acabarem todos, só resta ao homem (estará equipado?) a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo: Pôr o pé no chão do seu coração. Experimentar. Colonizar. Civilizar. Humanizar o homem. Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas a perene, insuspeitada alegria de con-viver”


A voz de Milton


Os olhos de Ailton brilham, e ele, nessa luta incessante para salvar o planeta, traz à cena a voz de Milton Nascimento, em “Simples”, de Nelson Angelo: “Olha o ouro da mina virou veneno, o sangue na terra virou brinquedo, e aquela criança ali sentada”. Sem perder o fio da esperança, o escritor acredita que com conhecimento, arte, literatura, discussão sobre as questões ambientais se torna possível encontrar saídas para as crises mundiais. “Precisamos ‘hablar’ de outros mundos, mas sem sair do nosso”, acredita.

 


Seriam, então, os escritores os profetas dos novos tempos? Krenak prefere não falar em profeta, que remete a outras esferas. “Há pessoas que têm um sentimento forte, poderoso, que verbalizam uma tragédia que queremos evitar. Prefiro dizer que são antenas do mundo”. Nesse momento, mostra a capa do livro “Kuján e os meninos sabidos”, de sua autoria com ilustrações de Rita Carelli, com o qual estreou na literatura infantil.

 

E é com grande prazer, após enaltecer o encontro que teve com as crianças no Fliparacatu, que conta a história do retorno doCriador à Terra para ver como estão suas criaturas.Ele vem na forma de um kuján, um tamanduá. Mas, ao chegar por aqui, o kuján é caçado para virar o prato principal em uma festa na aldeia. Porém dois meninos muito sabidos se dão conta e resolvem ajudar. “Que mundo estamos oferecendo às crianças? Para elas, é danoso ver adultos em pânico, ouvir discursos apocalípticos.”


Pão na chapa

 

A conversa está boa e Krenak diz que adora padaria, “para entrar em contato com a cultura local, sem filtro”, sugerindo passear pela cidade para comer pão com manteiga na chapa. E explica inesperadamente: “O jeito de fazer mostra o caráter de uma pessoa. Uns põem até margarina, o que não é muito bom. Aí prefiro ir embora da cidade”. Mas surge outra proposta, ele gosta e aceita provar as famosas quitandas de Paracatu.

 


À mesa de uma lanchonete, vem a brincadeira que também aceita de bom grado: Duas ou três coisas que você não sabe sobre Ailton Krenak. E aí vai um resumo.

 


1) Na internet, dizem que você é filósofo. Já cursou faculdade?


Não tenho curso superior. Mas sou doutor “honoris causa” pela Universidade de Brasília (UnB), pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, na Zona da Mata mineira), e pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).


2) Você é de algum partido político?


Algumas pessoas pensavam, incluindo o presidente Lula, que sou do PT (Partido dos Trabalhadores). Mas não sou filiado a partido nenhum.


3) Você tem religião?


Não.


4) De onde vem seu conhecimento?


Da Mãe-Terra, de fontes ancestrais.


O assunto política remete às recentes críticas feitas por Krenak ao atual governo, para o qual demonstrou descontentamento diante da atuação do Ministério dos Povos Indígenas, “que não conseguiu dizer ainda a que veio”. O senhor recebeu alguma reprimenda de autoridades? Ele responde que não: “Recebi, na verdade, manifestações de apoio de muita gente.”

 


Uma informação para a legião de admiradores de Krenak é que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) abriu processo para lhe conceder o título de “notório saber”, que tem o mesmo valor de doutorado acadêmico. Não há previsão de dada, mas, tão logo concedido, Krenak terá direito a participar de concurso como docente e lecionar.


Dança cósmica

Após provar as quitandas locais, Krenak vai se preparando para participar do encerramento do Fliparacatu, cujo curador-presidente, Afonso Borges, realiza mensalmente na cidade o projeto “Sempre um papo”. O escritor fala a uma multidão – o auditório montado especialmente para o evento se encontra lotado, com gente nas laterais e de pé.


Na palestra, com grande parte dos 60 escritores brasileiros e estrangeiros convidados, externa seus temores pela destruição do planeta e convida sobre os presentes para uma imaginária “dança cósmica”. Que coreografia é essa? “Se você fosse convidado para uma dança cósmica, aceitaria ou sairia cabisbaixo? Quando experimentamos essa espécie de suspensão, é bom saber que, se ficarmos com medo e não formos, teremos que esperar a próxima encarnação.” Em resumo, parece que a vida está pulsando e convidando cada um a dar seus passos para proteger a Terra.

 


Ao final do festival, sob muitos aplausos, Krenak recebeu uma bela homenagem. O jovem Jonas Samaúma, autor de literatura de cordel, narrou a trajetória do líder indígena, um homem que marca seu destino com luta, palavras, lucidez, convivência, e conduz a vida em Resplendor, “na curva do Rio Doce”, em família, com a mulher, seis filhos e seis netos. Eis uma estrofe de “Ailton Krenak: O rio da memória”. “No ano de cinquenta e três, Ailton veio ao mundo, com o propósito profundo de quebrar todos os clichês. E mostrar para vocês, quem é que lhe avizinha; Na beira do Itaberinha, o córrego que lhe trouxe, que deságua no Rio Doce, depois pro mar se encaminha”.

(*) O repórter viajou a convite da Kinross