Brasileiros aficionados por HQs comemoram o Dia do Quadrinho Nacional todo 30 de janeiro. A data, que não foi criada por norma legal, já configura em todos os calendários de efemérides brasileiras quase como dia oficial. Isso porque exatamente em 30 de janeiro de 1869, o caricaturista italiano Angelo Agostini publicou na revista “A vida fluminense” os primeiros capítulos de “As aventuras de Nhô Quim ou impressões de uma viagem à Corte”.
Era um experimento gráfico no qual o italiano, à época com 26 anos, fundamenta a história pelas imagens. Nela, o jovem Nhô Quim, filho de um rico senhor de terras do interior de Minas Gerais, se apaixona por uma moça de família pobre e é mandado pelo pai ao Rio de Janeiro para pensar direito a respeito do namoro. Nhô Quim parte e protagoniza uma série de confusões na capital, revelando-se verdadeiro caipira.
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O modelo (visual) que Agostini adotou para contar a história de Nhô Quim era, de fato, inovador. Contudo, não pode ser considerado como HQ, dizem os pesquisadores Aline dell’Orto e Marcelo Balaban. Os dois reuniram as publicações de Agostini sobre Nhô Quim no livro “As aventuras de Nhô Quim ou impressões de uma viagem à Corte – Romance ilustrado”, que sai agora pela Chão Editora.
HQ ou romance ilustrado?
Em ensaio que se segue à reunião dos desenhos, a dupla defende que o experimento gráfico de Agostini – e, posteriormente, de Cândido Aragonez de Faria, que assumiu a tarefa de desenhar e criar as histórias de Nhô Quim a partir de 1872, quando Agostini desiste do personagem – é um “romance ilustrado”.
“O maior erro de todo mundo que comenta sobre Nhô Quim é dizer que foi a primeira HQ do Brasil”, afirma Balaban, que é professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) com especialização em pesquisas sobre literatura e caricatura.
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“(No ensaio), a gente olha para um conjunto amplo de referenciais que existiam à época – no Brasil e fora –, e que vão ajudar a dar forma àquilo que era, sim, uma novidade, mas que não se trata efetivamente de HQ. E sim, conforme o próprio autor defende, um romance ilustrado”, ressalta Balaban.
Aline dell’Orto concorda. Membro associado do Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines da Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, ela destaca que o foco narrativo de Agostini vem de referências múltiplas e não se caracteriza como quadrinhos.
“Era na imprensa (tanto do Brasil, quanto dos países sul-americanos e europeus) que estavam os artistas que não conseguiam fazer carreira nas academias de belas artes. Eles estavam experimentando e até teorizando o que era narrar em imagem”, destaca ela.
Definições de gênero literário à parte, fato é que “As aventuras de Nhô Quim” é uma sátira contundente à elite senhorial da época, que se concentrava em Minas, constituindo-se de ricos senhores de terra e donos de escravizados.
“Defensor da República, anticlerical assumido e, sobretudo, abolicionista”, conforme destacam Balaban e Aline dell’Orta, Agostini faz de Nhô Quim a personificação da elite imperial brasileira, aproveitando para agredi-la de maneira feroz. Isso ocorre em todo o “romance ilustrado”, mas se escancara principalmente em passagens como o episódio em que o protagonista tenta brigar contra seu próprio reflexo no espelho e na ocasião em que se safa da prisão ao mostrar a quantidade de dinheiro na carteira.
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Há também sutilezas. No capítulo 13, por exemplo, Nhô Quim está hospedado na casa de um rico senhor e vai tomar um copo de água oferecido pela mucama. Ele derrama tudo nos próprios olhos (indicativo da estupidez do protagonista) e fica furioso com a escravizada.
Racismo escancarado
Nhô Quim a agarra, mas, nesse momento, um dos moradores passa por eles. Acreditando tratar-se de uma tentativa de estupro, tal morador não se escandaliza. Faz apenas uma reprimenda amigável: “O senhor, um homem tão fino, querendo abraçar a Joana, quando há por aí tanta francesa de estadão...! Venha comigo ao cassino, e verá”, diz o homem.
Ser republicano e abolicionista não fez de Agostini um antirracista. Pelo contrário, o cartunista italiano nutria fortes preconceitos contra a população negra. Em suas histórias, tais personagens são retratados de maneira estereotipada (com lábios muito grossos e olhos branquíssimos e arregalados), quando não inferiorizados. Basta analisar Mademoiselle XX, uma cortesã negra, que cruza o caminho de Nhô Quim, pensa ter sido roubada por ele, mas muda de ideia ao descobrir que ele é rico.
“(Ele) não deixava de expressar opiniões mais do que preconceituosas sobre homens e mulheres negros, escravizados livres e libertos. A obra de Agostini ensina, de um modo quase didático, que racismo e abolicionismo muitas vezes caminham juntos”, ressaltam Balaban e Dell’Orto no posfácio.
“AS AVENTURAS DE NHÔ QUIM OU IMPRESSÕES DE UMA VIAGEM À CORTE”
. Romance ilustrado de Angelo Agostini e Cândido Aragonez de Faria
. Organização: Aline dell’Orto e Marcelo Balaban
. Chão Editora
. 200 páginas
. Preço: R$ 61, à venda nas livrarias e pelo site chaoeditora.com.br