A academia, de uma maneira geral, é prolífica em torno de trabalhos de pós-graduação sobre o Clube da Esquina. Mas não tanto em relação à sua figura central. Este foi, inclusive, um dos motivos que levou a jornalista e pesquisadora paulista Fernanda Patrocínio a se debruçar na produção de Milton Nascimento.

 




Defendida em agosto passado no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a tese “Lá vem o trem: Uma análise sociológica sobre o cancioneiro de Milton Nascimento” faz um apanhado dos álbuns de vinil que o cantor e compositor lançou desde 1964 (“Barulho de trem – Conjunto Holiday”) até 1993 (“Angelus”).

 


“A ideia, a partir de um apanhado geral dos álbuns, foi entender o reflexo do que está sendo contado (por meio das músicas), como as histórias narradas refletem na nossa cultura até hoje”, afirma Fernanda.

 


Ainda que “Clube da esquina” (1972) seja um marco não só na trajetória de Milton e Lô Borges, mas na música popular, esse trabalho não tem um peso maior do que outros momentos da carreira do cantor e compositor. “O Clube tem um impacto cultural gigantesco, e é um objeto bastante complexo, pois tem muitas faces. Mas, de um tempo pra, cá vejo mais pessoas interessadas em trabalhar o Milton além do Clube”, diz ela.

 


Em Belo Horizonte, ela foi até o Grupo Corpo, onde entrevistou o coreógrafo Rodrigo Pederneiras. “Maria, Maria” (1976), composta para o espetáculo de origem da companhia mineira, é um marco do grupo e do compositor. “O trabalho dele nos anos 1970 não só evolui, mas também o aproxima de outros artistas. O Milton está sempre abrindo portas”, comenta Fernanda.

 


A espinha dorsal da tese foi a canção “O cio da terra” (música de Milton, letra de Chico Buarque), lançada no álbum “Geraes” (1976).

 


Gestos da agricultura


Canção inspirada no canto feminino durante a colheita, no interior de Minas Gerais, ela acabou sugerindo a divisão utilizada pela pesquisadora para a análise. “Não dividimos os álbuns por décadas, mas em gestos da agricultura”, conta Fernanda. A primeira parte se chama “Arar”. A partir de “Travessia” (1967, a estreia da parceria com Fernando Brant), trata das origens de Milton e de sua vivência em Três Pontas.

 


Ainda que Brant e Márcio Borges sejam os letristas mais presentes na produção cancioneira de Milton, Fernanda também não separou as músicas por coautor. “Fui elencando as canções que tinham mais representação dentro da proposta”, diz ela, que foi a campo para o doutorado, visitando Três Pontas, no Sul de Minas, onde Milton foi criado, BH e Rio de Janeiro.

 


“San Vicente” (Milton/Brant), canção de “Clube da esquina” (1972) é o norte do segundo bloco da tese, que leva o nome de “Semear”. A já citada “O cio da terra” é ainda o ponto de início do terceiro bloco de canções, “Regar”, que destaca mais profundamente o álbum “Milagre dos peixes” (1973). “Sueños con serpientes” (Silvio Rodriguez), gravada por Milton com Mercedes Sosa e o Uakti no álbum “Sentinela” (1980) dá início à quarta fase, “Crescer e frutificar”.

 

Ativista dos direitos humanos


Neste capítulo, Fernanda tece uma relação de Milton com James Baldwin, escritor e ativista dos direitos humanos. “Olhando em perspectiva a trajetória de Milton Nascimento, é perceptível a presença de algumas das principais premissas do renascimento do Harlem, como o orgulho racial, o intelectualismo e a expressão criativa – uma oportunidade para remodelar o patrimônio e a herança afro-brasileira a partir do pensamento negro”, escreveu a pesquisadora em sua tese.

 


Por fim, o último bloco de canções, a partir de “Estrelada” (letra de Márcio Borges), do álbum “Angelus” (1993), foi reunido sob o tema “Colher”. Aqui, a autora faz uma análise mais aprofundada da trajetória do cantor e compositor nos Estados Unidos, e sua parceria com jazzistas.

 


“Comecei a tese (seu orientador foi o professor Fernando Antônio Pinheiro Filho) em 2018. Na época, pensava muito na questão da agricultura, até porque Três Pontas é uma cidade-referência para o café. À medida que a tese foi se desenvolvendo, vi que na utilização da agricultura como metáfora o Milton era muito mais voltado para a agrofloresta, pois isto reflete novos desafios também”, diz Fernanda.

 

Acontecimentos políticos


A tese também relaciona a produção de Milton com os acontecimentos políticos do Brasil. “Na década de 1960, ele é um jovem de 20 e poucos anos. No começo dos 1990, já um senhor. Neste período, ele não só amadurece, como também passa por todas as fases da ditadura e chega até a redemocratização. Vejo como as pautas vão surgindo, como a proximidade com o meio-ambiente, a questão indígena. A partir de Três Pontas, a tese vai abrindo o leque, falando também de nós, brasileiros”, afirma Fernanda.

 


Como sua defesa ocorreu há menos de um mês, a agora doutora ainda está na fase de “dar uma decantada” após um trabalho que consumiu seis anos. Espera, para o futuro, publicar a tese em livro. Houve uma recomendação da banca examinadora para tal.

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