São necessários 200 km de caminhada para refazer os passos de Riobaldo no seminal “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Desde 2014, com exceção dos anos pandêmicos de 2020 e 2021, um grupo parte anualmente de Arinos, no Noroeste de Minas Gerais, para percorrer o Caminho do Sertão, uma travessia sócio-eco-literária ao longo do cerrado mineiro.

 



 

Aqueles que aceitam o desafio encontram, logo no segundo dia de caminhada, uma octogenária que, certamente, serviria de inspiração para Guimarães Rosa: Geralda de Brito Oliveira, a Vó Geralda.

 
Natural da Fazenda Menino, uma comunidade de Arinos, Vó Geralda recebe os caminhantes em sua casa, compartilha causos sobre sua vida e os relaciona com a região, que é objeto de curiosidade por ser considerada “a cidade que nunca foi”.

 

Algumas dessas histórias foram transcritas pelas paulistas Isla Nakano e Renata Ribeiro, que conheceram Vó Geralda no Caminho do Sertão, e reunidas no livro “A porta aberta do sertão: Histórias da Vó Geralda”, lançado em coautoria com Vó Geralda pela Relicário Edições.

 

 

Personagem principal da publicação, Vó Geralda participará de debate sobre formas de educação fora das paredes escolares neste sábado (21/9), na 13ª edição do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes. Ela aproveitará a ocasião para fazer o lançamento presencial do livro.

 

Fazenda do Menino

Para entender a história, é necessário, primeiro, compreender o lugar. A Fazenda do Menino fez parte de um projeto de ocupação da Região Central do Brasil na década de 1950. Conforme Nakano e Ribeiro escrevem no prefácio, “em 1955, a empresa Colonizadora Agrícola e Urbanizadora S/A adquiriu 90 mil hectares de terreno a 200 km do que hoje é Brasília. A proposta era ocupar a terra e loteá-la em mil fazendas para formar a Colônia do Menino e delimitar uma área destinada à Cidade Marina, que seria construída no centro da extensão de terra onde, hoje, encontra-se a casa de Vó Geralda”.

 

O plano era ambicioso – Oscar Niemeyer assinou o projeto arquitetônico e Burle Marx ficou responsável pelo paisagismo – mas o desejo do então presidente Juscelino Kubitschek acabou não se concretizando. Rapidamente, a região passou a ser ocupada por assentamentos de reforma agrária, posseiros, agricultores familiares, comunidades quilombolas, unidades de conservação e monoculturas da agricultura empresarial. Além de enfrentar uma grave crise hídrica por causa da expansão de hidronegócios.

 

Foi nesse ambiente que Vó Geralda, hoje com 84 anos, sempre viveu. Conseguiu estudar e foi professora de alfabetização. Carrega saberes e curas locais, e coleciona desditas, como o casamento forçado, a violência doméstica e a perseguição política.

 

Vigilância e tortura


Amiga de um comunista ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), Vó Geralda chegou a receber em sua casa “Marighella, Brizola, João não sei o quê…”, conforme conta. Por causa disso, foi presa, torturada e colocada sob vigilância.


“Major Rubens falou pra mim: ‘Se você ficar procurando aquele vagabundo comunista, vai ser pega de novo e agora o negócio é feio para você’”, narra em trecho do livro que tratava sobre o amigo considerado comunista pelos militares.

 

Casamento arranjado

Sobre o casamento, ela lembra que foi forçada ao matrimônio com Zeca, filho de Zé Louro. “Não casei porque queria, foi um combinado da minha mãe, e eu, pra fazer o gosto dela, casei. Tô vivendo até hoje – tem 60 anos”, disse.

 

Mesmo enfrentando violência do marido, não teve a intenção de se separar: “Tinha hora que eu pensava: vou largá esse homem. Não cuida de mim, não faz nada. Vou largá... Mas não dava. Se largasse, eu ia ficar desmoralizada na parte da família da minha mãe e do meu padrasto, que me considerava muito”.

 

“A minha mãe falava que a pessoa que casava tinha que viver até a morte, que era pecado casar e largar o marido, maltratar o marido... Tinha que fazer tudo que o marido mandasse. Essa era a história dela, que a mulher era sujeita ao marido. Aí, eu caí nessa: passei cinco anos de fome e nua – porque o marido não agia e nem eu”, explicou.

 


Mãe de 10 filhos, Vó Geralda também teve de lidar com a fome. A família tinha um único cachorro, pois, se tivesse mais, morreria de inanição. Para ele, tanto quanto para as 10 crianças, a dieta se resumia a rapadura moída, melado com farinha ou beiju. A situação chegou ao extremo quando Vó Geralda resolveu tomar formicida para não ter que ouvir mais o choro dos filhos.

 

“Foi a única vez que eu fiz palhaçada de doido”, disse. “Apanhei o cabo de colher no pacote do formicida pra botar na xícara e, quando eu estou botando, a minha sogra entrou: ‘Ô, Geralda, cadê ocê, minha fia?’”.

 

A sogra, que não tinha a menor ideia do que Vó Geralda estava planejando, tinha ido convidá-la para almoçar.

 

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É assim, nessa narrativa simples e coloquial, que “A porta aberta do sertão” faz um retrato de Vó Geralda, jogando luz na história por trás das histórias e causos. Para esse registro, Isla Nakano e Renata Ribeiro gravaram 40 horas de conversa com Vó Geralda, que se surpreendeu.

 

“Eu achei que escrever livro era que nem os antigo fazia com as carta: sentava e escrevia. Depois colocava no envelope e tava pronta pra enviar... É muita história por trás da história.”

 

“A PORTA ABERTA DO SERTÃO”
• Vó Geralda, Isla Nakano e Renata Ribeiro
• Relicário Edições (244 págs.)
• R$ 59,90 (livro físico), nas livrarias ou pelo site relicarioedicoes.com.
• Sessões de autógrafo em Tiradentes, neste sábado, a partir das 11h, no Jardim do Iphan (R. da Câmara, 124, Centro).

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