Em muitos aspectos, "Sofia foi", de Pedro Geraldo, parece um curta expandido. Em outros, surge como um legítimo herdeiro do espírito de filme da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo desde pelo menos os anos 1980. O longa está em cartaz em Belo Horizonte. 

 




Parece também, ainda que minoritariamente, um desses documentários que captam o cotidiano de personagens reais atuando diante de uma câmera, algo na trilha e no espírito de Jean Rouch, atualizado para estes tempos em que buscar o real se tornou essencial no cinema.

 

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Tem atores e atrizes que, para a maior parte do público, são totalmente desconhecidos. E tem o tempo da observação, da espera e da errância, sua identidade maior.


Começa com uma imagem geral de um bairro da capital paulista. Um zoom revela uma pessoa passeando com seu cachorro. O bichinho resiste, ela se esforça para fazer com que ele ande. A imagem nos coloca como observadores de uma cena do cotidiano.

 

 

A pessoa, que depois veremos ser a Sofia do título, a que "foi", entra num parque, amarra o cachorro numa árvore e, fora do quadro, entra no lago. Após o corte, vemos apenas a água cintilando e o cachorro se esforçando para socorrê-la.

 

Narrativa minimalista

 

Ecos do suicídio de Anju em "O intendente Sansho", obra-prima de Kenji Mizoguchi, mas também de "Mouchette", de Robert Bresson. Será essa cena um desejo imaginado, um sonho recorrente ou algo que coloca fim a tudo que veremos em seguida?

 

 

A trama, se é que podemos falar nesses termos de uma narrativa tão minimalista, flagra a juventude universitária paulistana em seus anseios e percalços de amadurecimento.


A tatuadora Sofia mora no apartamento de um amigo que está fora. O aviso de que esse amigo está voltando e ela precisa sair do apartamento é lido por nós como se fosse um intertítulo de filme silencioso. Enquanto não sabe onde vai morar, ela monta um espaço improvisado no câmpus da USP e passa a atender clientes ali.


Sofia está quase sempre séria, com ar pensativo ou preocupado. Sabe que precisa trabalhar para ter moradia. Enquanto tatua, o metal alternativo industrial do grupo Bemônio invade a trilha, sendo depois cortado pelas moças que perguntam se dói tatuar. A dor, no filme, é outra.


Mas falar em história, ou trama, é trair um pouco seu aspecto sensorial, que se apresenta como um trabalho rigoroso de cinema poético, com bons e maus achados.


O longa – de apenas 67 minutos – apresenta opções de estilo que denotam o desejo de arriscar. A câmera frequentemente está perto do rosto das personagens. Tanto que, por vezes, só vemos a boca e parte do nariz de Sofia, ou parte de seus braços.


Enquadramento

 

Outro aspecto é o rigor do enquadramento. Em alguns momentos, há movimento, mas o quadro fica estático, fazendo com que um pedaço do cômodo desfocado ocupe toda a imagem.


Muito bela a sequência em que Sofia e outra moça se abraçam e se beijam, no que parece ser uma lembrança dos momentos passados com a moça, agora falecida. Montada parcialmente com o uso de imagens sobrepostas, que criam um aspecto onírico bem interessante, é um dos momentos que engrandecem o filme.


No caldeirão referencial que norteia a direção, parece ainda caber tanto o cinema contemporâneo português de Pedro Costa quanto o cinema oriental safra 2000, de Hou Hsiao-Hsien e Tsai Ming Liang, referências que a precariedade econômica da produção transforma em outra coisa, mais pessoal, um pouco menos derivativa.


É um filme estranho, às vezes até esquisito. Em alguns momentos, parece ter vergonha de ser o que é. Em outros, estampa com orgulho sua opção formal. Por essa indecisão, fica ameaçado pela perdição em seu miolo, sobretudo na sequência da festa, com os diálogos que explicitam demais o tom de despedida. É salvo por um providencial retorno ao rigor.


Após prêmios em festivais, uma boa recepção em sua estreia nos cinemas pode ser uma merecida coroação. O público será pequeno, obviamente. Mas com esse tipo de filme não é isso que importa, e sim o interesse genuíno desse público. (Sérgio Alpendre)


“SOFIA FOI”
Direção de Pedro Geraldo. Com Sofia Tomic, Jorge Neto e Sofia Carvalheira. Em cartaz no Una Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias 1.581 – Lourdes). Sessão às 19h20.

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