A câmera se posiciona diante da janela da sala de um apartamento vazio, focalizando a chuva e o céu cinzento de São Paulo. Sem sabermos de onde, surge uma voz que diz: “Na madrugada de 12 de maio, eu morri”. Assim começa o documentário “Antonio Candido, anotações finais”, de Eduardo Escorel, que entra em cartaz no cinema do Centro Cultural Unimed-BH Minas e no UNA Cine Belas Artes nesta quinta-feira (26/9) – no próximo 2 de outubro, haverá sessão comentada por Escorel e Cláudia Mesquita no centro cultural, às 20h10.

 




Tratando-se de um dos maiores críticos literários do país, é natural supor que o início do filme é uma aceno ao clássico machadiano “Memórias póstumas de Brás Cubas”, no qual o “defunto autor” começa, efetivamente, a história com: “Expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi”.

 

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Contudo, garante Escorel, a inspiração para o começo do documentário foi outro texto, “O pranto dos livros”, de autoria do próprio Antonio Candido (1918-2017), no qual o narrador, já morto, imagina estar fechado no caixão enquanto seus livros choram.

 

 

Casado com a filha mais velha de Antonio Candido – a designer e escritora Ana Luísa Escorel –, Eduardo Escorel já vinha trabalhando em um projeto audiovisual sobre o sogro no intuito de manter viva sua memória. Entre as pesquisas que vinha desenvolvendo, encontrou uma série de anotações pessoais do crítico literário. Foram encontrados 74 cadernos, cujas primeiras anotações datam de 1933 e seguem até as vésperas da morte do crítico, em 2017.


Ipsis litteris

 

“Talvez, num momento raro de lucidez, eu percebi que não daria para fazer um filme sobre todos os cadernos”, brinca Escorel, em entrevista por telefone. “Propus às filhas (além de Ana Luísa, Antonio Candido teve também Marina e Laura) fazer um filme sobre os dois últimos cadernos, que vão de 2015 a 2017”, conta.

 

 

Com exceção da frase inicial, todo o restante do filme é narração ipsis litteris dos escritos de Antonio Candido na voz de Matheus Nachtergaele. O relato é coberto por fotos de arquivo pessoal (o acervo da família conta com cerca de 8 mil imagens), filmagens do apartamento vazio de Antonio Candido e vez ou outra cenas de filmes que ele se refere.


Quando o crítico fala sobre a banalização da violência pelos criminosos brasileiros (“matar se tornou banal”, escreveu ele), cita Arsène Lupin como um gentleman. Nesse caso, cenas do filme homônimo do anti-heroi dirigido por Jack Conway, em 1932, são reproduzidas.


O maior acerto de “Antonio Candido, anotações finais”, no entanto, é apresentar o crítico literário sob outro prisma, ainda pouco conhecido. Ou melhor, deixar que o próprio documentado fale sobre si.


As anotações não versam sobre literatura, e sim sobre impressões a respeito da própria vida, da família e da conjuntura política do momento que vivia (a então presidente Dilma Rousseff enfrentava processo de impeachment).


Aos 98 anos, Antonio Candido deixou claro que ainda tinha libido (em uma das anotações, comentou fotos da atriz Maria Flor seminua publicadas em jornal). Ao mesmo tempo, conformava-se com a morte iminente. “Ao acordar me veio a ideia que talvez eu já tenha ultrapassado a hora certa para morrer”, escreveu ele.


Sobre a política nacional, lembrou que esteve no processo de formação do Partido dos Trabalhadores (PT), mas se afastou da sigla depois da eleição de Lula, em 2002. E foi taxativo: “Chego a pensar que tanto o partido quanto a sua principal figura já cumpriram a missão histórica que lhes coube ao tirarem da fome os milhões de brasileiros que tiraram. Cabe agora uma nova onda, que se há de configurar um dia, dar mais um avanço”.


Lula e Cunha

 

Ao atual presidente, no entanto, mostrou admiração, dizendo que Lula “não deve ser avaliado do ponto de vista político, nem econômico e nem mesmo ético daqui por diante, mas do ponto de vista histórico, como o homem que presidiu aquela missão que atenuou sensivelmente a sensação de iniquidade econômica e social, que é a vergonha do Brasil”.


Já o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, não foi poupado. Toda vez que Antonio Candido se referia a ele nos seus cadernos, escrevia o nome do político acompanhado sempre do mesmo aposto: “o celerado”.


Escravidão

 

Antonio Candido também lembrou com desgosto que a fortuna dos avós maternos vieram do tráfico de escravos (“O fato de o dinheiro resultante não ter chegado sequer à minha mãe é um magro consolo que não nos desliga da sinistra teia de interesses que está na base do Brasil via escravidão”) e guardou memórias positivas dos pais, irmãos e da esposa Gilda, nome recorrente nas anotações.
“Eu não queria um documentário (convencional) com depoimentos de amigos e familiares, mas um filme em que o espectador pudesse ter acesso ao pensamento de alguém que está encarando a iminência da morte”, afirma Escorel. “Gostaria que os espectadores tivessem essa revelação que basicamente é uma revelação de um homem de sabedoria extraordinária visto por uma outra dimensão”, conclui.


“ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS”
(Brasil, 2024, 84min, de Eduardo Escorel. Classificação: 14 anos) - Sessões no Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 20h10 (sessão comentada por Eduardo Escorel e Cláudia Mesquita em 2 de outubro) e no UNA Cine Belas Artes, às 17h40.

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