O direito ao encanto. É este o tema central de “De onde eles vêm” (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, de 47 anos, que chega às livrarias em 25 de outubro. Quarto romance do escritor e professor carioca radicado em Porto Alegre, é o primeiro desde “O avesso da pele” (2020).
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Essa obra esteve envolvida em um debate nacional sobre censura, iniciado em março, após a diretora de uma escola gaúcha ter pedido seu banimento. O livro foi recolhido em colégios de alguns estados – as cenas de sexo seriam impróprias para estudantes do Ensino Médio, alegaram.
O imbróglio fez de “O avesso da pele” um bestseller quatro anos após sua publicação – atingiu os 200 mil exemplares vendidos.
Em “De onde eles vêm”, Tenório trata da chegada dos primeiros cotistas (ele próprio foi um) à universidade. Seu personagem central é Joaquim, jovem negro, morador de uma vila em Porto Alegre, que perdeu a mãe e é criado pela avó, que apresenta os sinais iniciais de demência.
Leitor desde sempre, Joaquim entra para o curso de Letras porque quer ser poeta. Descobre, de cara, que a universidade não está de braços abertos para ele. Sua vida acadêmica, seus relacionamentos amorosos, seus novos amigos, sua possibilidade de futuro, tudo parece estar ligado à precariedade de sua própria existência.
“Minha intenção não foi a de discutir as cotas em si, mas ter como pano de fundo a entrada desses alunos e as transformações muito sutis que vão acontecendo no ambiente acadêmico”, afirma Tenório, na entrevista a seguir ao Estado de Minas.
Qual a relação entre a sua trajetória e a do Joaquim na universidade?
Entrei na universidade em 2004, no curso de bacharelado em inglês, antes da implantação das cotas. Fiz quatro anos de bacharelado, anos terríveis para mim. Até que, em 2007, começou o movimento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela implantação das cotas.
Participei desse movimento, ocupei a reitoria. Em 2008, vieram as cotas, foi quando eu fiz o vestibular e entrei na licenciatura. Aproveitei as disciplinas que já tinha e me formei em 2010. Eu me tornei o primeiro cotista negro a se formar na UFRGS. “De onde eles vêm” é um despertar da consciência que eu já tinha na época. No caso do Joaquim, não. De certo modo, ele é até um pouco alienado.
Eu queria um personagem assim, não um aguerrido, levantando bandeira. Queria que o leitor também fosse tomando essa consciência junto com ele, fosse percebendo as coisas de um modo muito sutil, de como as mudanças iam acontecendo.
O romance traz referências e citações de vários escritores. Um livro se torna quase personagem: “Terra estranha”, de James Baldwin. Foi também uma obra importante para a sua formação?
O Baldwin sempre foi uma referência para mim, principalmente depois que eu comecei a encontrar autores negros – isso se dá ali durante o meu mestrado. Estão aí também a Toni Morrison; o Ralph Ellison, com “Homem invisível”; Langston Hughes.
São todos autores que, de certo modo, vão me mostrar que era possível fazer uma discussão literária tratando de questões raciais, sem que, de modo algum, se transformasse num livro de reivindicação ou panfletário. Foi importantíssimo ter conhecido a obra do Baldwin para conseguir escavar essa humanidade através da literatura.
Há um trecho em especial em que você traça um paralelo entre a vida do personagem e a literatura: “Aquilo não era literatura. Era a vida sendo a vida com toda a sua força e violência. E me dei conta de que eu não estava lendo aquele livro para dar sentido à minha existência ou à existência da minha avó, eu lia simplesmente porque era terno. Era por isso que me sentia culpado. Como se eu não tivesse direito ao encanto”.
Foi muito interessante você trazer esse trecho porque todo o argumento de “De onde eles vêm”, de certo modo, tem a ver com ele. Tem outros trechos, mas agora, refletindo de pronto, talvez esse reflita melhor.
Eu entendo que o romance é, no fundo, a defesa do direito ao encanto, uma defesa do direito a se encantar com a literatura, como diria Antonio Candido. E esse personagem, como sofre muito para conseguir algo básico, que é conseguir estudar, permanecer na universidade, e todo aquele cenário terrível com a avó, hospital e pobreza, se culpabiliza por não ter esse direito de poder se encantar com a literatura, como se a literatura fosse algo supérfluo.
Acredito que durante muito tempo o seu nome virá acompanhado por “o escritor que foi censurado”. Isto te incomoda?
No mundo em que a gente vive, no mundo que a gente se tornou, para mim é um prêmio, é um elogio ser chamado de autor censurado. Acho que consegui mexer em alguma estrutura para ter feito um barulho como foi feito. É claro que torço para que isso não aconteça mais comigo e com ninguém. A gente tem que incentivar a leitura não por causa da censura, mas por causa da literatura em si.
O que você espera diante deste novo romance?
Tenho um compromisso com os meus leitores: levar o melhor que eu consegui fazer. Escrevo livros que não encontrei na minha adolescência e na minha juventude. Fui um leitor tardio. Esse é o meu desafio. O que eu quero é ser lido.
E ser lido justamente por aquelas pessoas que talvez nunca tenham aberto um livro. E que peguem o meu livro e que consigam terminá-lo. E que peguem algo para suas vidas. Acho que, num país de poucos leitores, eu não posso dizer que se dane o leitor. Não posso ignorar. Então, procuro fazer uma linguagem que seja minimamente acessível para eles.
“DE ONDE ELES VÊM”
• Jeferson Tenório
• Companhia das Letras (208 págs.)
• R$ 74,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)
• Lançamento em 25 de outubro.