Academia Mineira de Letras  -  (crédito: Divulgação/ iepha.mg)

Mostra, que começa neste sábado (5/10) vai até 6 de novembro, na Academia Mineira de Letras

crédito: Divulgação/ iepha.mg

 

Memoricídio é um termo recorrente na pesquisa de Constância Lima Duarte para definir o apagamento de escritoras na história da literatura brasileira. Professora doutora da Faculdade de Letras da UFMG, Constância tem vasta produção no estudo da literatura produzida por mulheres no país.

 


Em exibição na Academia Mineira de Letras a partir deste sábado (5/10) até 6 de novembro, a mostra “A presença feminina na literatura brasileira: Um caminho difícil” busca se contrapor à invisibilização das mulheres no campo das letras.

 

Com mais de 70 obras publicadas entre os séculos 18 e 21, a mostra destaca a presença feminina na literatura brasileira, apresentando edições raras publicadas por Patrícia Galvão, Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, Adélia Prado, Zélia Gattai e Ana Cristina César, entre outras. Ao todo, 49 escritoras são representadas.

 


Muitos nomes das pioneiras só foram revelados após a pesquisa acadêmica das últimas décadas. Além dos livros, o público poderá conhecer as histórias e os desafios enfrentados por essas mulheres para serem reconhecidas no universo literário, seja em forma de romances, poesias, crônicas, contos ou memórias.


Acervo de bibliófilos

Os livros vieram do acervo do casal de bibliófilos Romulo Pinheiro e Patrícia Peck, fundadores do Instituto Peck Pinheiro, organização sem fins lucrativos dedicada à preservação da memória da literatura brasileira. A coleção do casal reúne mais de 25 mil títulos, sendo 5 mil de literatura nacional, incluindo edições raras e primeiras tiragens.


Na exposição, estão presentes “Máximas de virtude e formosura” de Teresa Margarida da Silva e Orta, o primeiro romance escrito por uma brasileira; os poemas de Maria Firmina dos Reis, a primeira escritora negra do Brasil; “Espectros”, o livro mais raro de Cecília Meireles, e as primeiras publicações de Henriqueta Lisboa e Lygia Fagundes Telles, que posteriormente foram relegadas pelas autoras e, no caso de Lygia, até proibido de ser reeditado.


Romulo conta que o costume do casal de adquirir livros vem desde a adolescência. Juntos há 21 anos, eles decidiram oficializar a coleção em 2014. Os colecionadores têm um perfil no Instagram com mais de 35 mil seguidores, no qual compartilham as obras mais especiais da biblioteca, armazenada em seu apartamento, em São Paulo.

 

Obstáculos à publicação


A mostra na AML busca aproximar os tesouros do público, já que a biblioteca do casal recebe visitas apenas de amigos e conhecidos. A partir daí, decidiram criar um recorte para falar das dificuldades enfrentadas pelas mulheres na literatura brasileira.


“Queremos mostrar os obstáculos que foram colocados e o esquecimento que recaiu sobre elas. O termo cunhado por Constância, memoricídio, foi um norteador”, diz Romulo. “Temos obras que não estão presentes, por exemplo, na Biblioteca Nacional, na Biblioteca da UFMG ou na Mário de Andrade. Os bibliófilos têm essa busca por encontrar obras raras e guardá-las”, comenta.


No acervo de aproximadamente 200 autoras, o casal escolheu as 49 por serem as que mais enfrentaram obstáculos e dificuldades em suas publicações. O recorte vai de 1777, com “Máximas de virtude e formosura”, até 2003 com a primeira publicação de Conceição Evaristo, “Ponciá Vicêncio”.


A mostra terá uma vitrine dedicada às obras das 11 escritoras que integram a AML: Alaíde Lisboa, Ana Cecília Carvalho, Carmen Schneider Guimarães, Conceição Evaristo, Elizabeth Rennó, Henriqueta Lisboa, Lacyr Schettino, Maria Antonieta Antunes Cunha, Maria Esther Maciel, Maria José de Queiroz, e Yeda Prates Bernis.

 


Projeto de museu

O casal de bibliófilos Romulo Pinheiro e Patrícia Peck deve se mudar em breve para Minas, para criar um Museu de Literatura Brasileira em Ouro Preto, onde o acervo do casal será exposto permanentemente ao público. “Optamos por Ouro Preto porque é o berço da literatura brasileira”, diz Romulo.

 

Enquanto os planos para o museu não saem do papel, a dupla pretende continuar rodando o país com exposições. Em março de 2025, eles vão expor os livros na Casa dos Contos, também em Ouro Preto. O plano é incluir mais autoras nas mostras previstas para o ano que vem.

 

Pesquisadora homenageada


A exposição “A presença feminina na literatura brasileira: Um caminho difícil”, que será aberta neste sábado (4/10) na AML, é dedicada à pesquisadora mineira Constância Lima Duarte. Especialista em literatura de autoria feminina, publicou os livros “Imprensa feminina e feminista no Brasil” e “Algumas histórias sobre o feminismo no Brasil”. 

 

 

“Acho de grande importância essa exposição. Ela traz ao público páginas da nossa história, da história intelectual da mulher brasileira que não são conhecidas por não serem contadas. Uma exposição como essa é uma das iniciativas mais necessárias para trazer a público e tirar esse véu. Mostrar que essas mulheres existiram e estão escrevendo desde sempre”, avalia Constância.

 

“Essa é uma pequena mostra. Existem centenas de outras mulheres que não foram lembradas e ficaram esquecidas. Precisamos de muitas outras exposições como essa para continuar revelando essa presença”, acrescenta.

 

A seguir, a entrevista que ela concedeu ao Estado de Minas.

 

 

Você poderia explicar o conceito de "memoricídio"? Como ele se aplica ao esquecimento das escritoras brasileiras ao longo da história e como isso pode ser revertido?


As mulheres sempre participaram das ciências, da cultura e até mesmo das guerras, mas nunca são lembradas. Suas participações são sempre apagadas. As que ousaram exibir o brilho do seu intelecto e romperam os limites impostos pelo poder patriarcal publicando livros e fundando jornais nos séculos 18 e 19 e até na primeira metade do 20, tornaram-se depois ilustres desconhecidas, pois foram sistematicamente alijadas da memória e do arquivo oficial.


Elas se impuseram, independentemente de serem reconhecidas ou aplaudidas, e foi a qualidade de seus trabalhos que obrigou a crítica a reconhecer que havia valor ali. O conceito “Memoricidio” designa, eu penso, o assassinato da memória de uma cultura.

 

E pode designar também o  processo de opressão e de negação da participação da mulher ao longo da história. Foram portanto razões ideológicas as razões do memoricídio: jogar no limbo do esquecimento as primeiras produções intelectuais das mulheres, bem como sua participação nas lutas sociais.


Quanto às estratégias para mudar esse quadro, eu penso que exposições como essa que a AML está promovendo e ainda os novos cursos e disciplinas que vão sendo ministradas nas escolas, funcionam como um antídoto para o memoricídio, pois estão na contramão de tudo que foi um dia estabelecido.

 

 

Quais foram os principais desafios enfrentados pelas escritoras brasileiras ao longo dos séculos para serem reconhecidas?


As mulheres não tinham valor nos séculos 17 e 18. Não tinham direito de dar opinião sobre nada. Imagino a coragem e a ousadia que foram necessárias para fazerem suas publicações. Elas enfrentaram desafios de toda natureza simplesmente por serem desacreditadas porque eram mulheres.

 

Até meados do século 20 as escritoras não tinham o seu valor reconhecido. Essa exposição é representativa de histórias de opressão e de desafios que essas autoras enfrentam para serem reconhecidos e que hoje não temos ideia de como. Podemos até supor, imaginar quaisquer que teriam sido as dificuldades que elas enfrentaram, mas acho que passamos longe.

 

Falar sobre isso é uma coisa muito recente. foi o moviemnto feminista das decadas de 1970 e 1980, a nossa historia mais recente é que começou a tirar a poeira dos nomes dessas mulheres. 


No contexto atual, você acredita que as barreiras de gênero do campo literário estão superadas?


As barreiras foram arrombadas. as mulheres botaram o pé na porta e a derrubaram. Não tem como negar mais a importância da mulher na construção de todas as áreas da sociedade. Tudo isso é resultado de um movimento feminista de uma movimentação na cabeça das mulheres que negaram ser discriminadas, que não permitiram mais.

 

Hoje não há mais como negar a importância e o valor de qualquer realização feminina. As mulheres estão finalmente sendo apresentadas. 


Penso que esse apagamento da presença e da participação das mulheres na cultura, literatura, e mesmo nas lutas sociais, é responsável pelo desconhecimento de nossa história. As novas gerações devem pensar que o mundo sempre foi assim, como encontraram, e desconhecem o quanto as mulheres foram oprimidas e discriminadas.


 


“A PRESENÇA FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA: UM CAMINHO DIFÍCIL”
Até 6 de novembro, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1.466 - Lourdes). Entrada franca. Visitação de terça a sexta, das 11h às 19h30, e aos sábados, das 10h às 16h. Fechada somente no dia 2 de novembro, sábado.