Com mais de 60 anos de carreira, o artista plástico Fernando Pacheco, de 75 anos, inaugurou na última quinta-feira (3/10), na Casa Belloni (João Pinheiro, 287 – Funcionários), a mostra “Comer com os olhos”. A exposição do mineiro conta com 32 pinturas feitas em pratos de porcelana, emoldurados em caixas com vidro.

 

Para contar sobre a exposição, o “EM Minas”, programa da TV Alterosa em parceria com o Estado de Minas e o portal UAI, recebeu Pacheco, que já expôs em museus da Nova Zelândia, Austrália, Taiwan, Japão e China.

 



 

A mostra, que fica exposta até 19 de dezembro, brinca com o “conceito das pinturas serem em pratos de porcelana e com a ideia de que a arte é percebida primeiramente pelos olhos e pupilas – onde cria-se um território no qual a fantasia e os mistérios de cada um e da vida encontram diálogo”.

 


Natural da histórica São João del-Rei, e, cidadão honorário de Belo Horizonte, o artista contou como sua cidade natal influenciou suas obras, citando “a riqueza do expressionismo Barroco e o expressionismo caipira”, que o marcaram profundamente.

 

 

Além disso, Pacheco citou as obras de Inimá de Paula, Lasar Segall, Joan Miró, Lorenzato, que também o influenciaram. “Inclusive, em Taipei, minha exposição foi aberta ao lado de uma gigantesca exposição de Miró.” A íntegra da entrevista pode ser conferida a seguir:


Como você começou a sua trajetória artística?
Eu comecei minha trajetória artística com exposições mais tarde, pois, na minha adolescência, formei uma banda de rock onde eu tocava bateria. Isso foi entre 1964 e 1970. Durante esse tempo, eu pintava no meu ateliê, mas apenas para mim, sem realizar exposições. Tocávamos naquele estilo que acompanhava a trajetória dos Beatles.

 


Isso foi ainda em São João del-Rei?
Não, isso já foi em Belo Horizonte. Eu nasci em São João del-Rei, em 1949, e trago São João del-Rei comigo até hoje. A riqueza do expressionismo Barroco e o expressionismo caipira me marcaram profundamente.

 

Fernando Pacheco afirma que "comer com os olhos é criar território onde a fantasia e os mistérios de cada um e da vida encontram diálogo"

Noir Filmes/Divulgação

Isso influenciou muito minha obra, com toda a dramaticidade e teatralidade das procissões, festas religiosas, igrejas e o Barroco mineiro. Principalmente a questão humana, simbolizada, por exemplo, no Cristo morto no caixão de vidro na igreja do Carmo, da qual eu era vizinho. Todos esses elementos eu trouxe comigo da infância para Belo Horizonte, onde moro desde os 6 anos de idade. E sou cidadão honorário da capital com muita alegria.


Do que se trata sua nova exposição “Comer com os olhos”?
Minha trajetória como pintor começou por volta de 1970. Recentemente, abri duas exposições: uma no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e, nesta semana, inaugurei “Comer com os olhos” na Casa Belloni.

 

O título é conceitual, pois pintei em pratos de porcelana, e a ideia é que o 'comer' é feito com os olhos. Eu não gosto do termo 'artes plásticas', já que estou cansado desse negócio de plástico. No meu ateliê, em Saquarema (litoral do Rio de Janeiro), quando chego lá, a primeira coisa que faço é catar plástico na praia.

 

Por isso, prefiro ser chamado de artista 'elástico', não plástico. A exposição traz essa ideia: como a pintura é uma arte percebida inicialmente pelos olhos, chamei-a de “Comer com os olhos”.

 


Você tem uma atitude engajada no seu trabalho?
Sou uma figura contemporânea, intencional, e acompanho o que é desenvolvido atualmente na arte contemporânea. Contudo, sou fiel à minha linguagem pictórica, porque minha arte é ligada ao humanismo e às questões humanas.

 

Não incorporo em minhas pinturas temas do dia a dia, como guerras ou atitudes políticas. Considero a própria arte uma atitude política, pois, ao se propor a criar, o artista reivindica a liberdade criativa e de expressão. Minha arte é figurativa e voltada para o universo humano. Através dela, podemos explorar mistérios, segredos, fantasias e sonhos humanos, o que tem o potencial de transformar o mundo.


Explique o conceito por trás de “Papel do artista”.
“Papel do artista” são pinturas que desenvolvo usando como suporte papelão, caixas de embalagens comerciais. Se você me der uma camisa de presente, por exemplo, eu abro a caixa e pinto nela.

 

Essas embalagens passam a ser parte integrante da obra. Há uma mensagem dupla nesse conceito: literalmente, o papel como suporte para a pintura, e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o papel do artista na sociedade, seja social ou político.


Também gosto de mostrar às crianças que não é preciso gastar muito em telas ou materiais de pintura. Elas podem usar qualquer coisa, como uma caixa de refrigerante, para exercitar sua criatividade. É isso que desenvolvo: “o papel do artista”, pintando sobre embalagens comerciais, paralelo às minhas pinturas em tela.


Você é autodidata?
Sim. Nunca estudei em escolas de arte, como a Escola de Belas Artes ou a Guignard. Fui autodidata e trilhei meu caminho sozinho, como Van Gogh, muitas vezes recluso no ateliê. Comecei a abrir meu caminho me inscrevendo em salões de arte, onde havia júri de seleção e premiação.

 

Desenvolvi minha técnica de forma muito pessoal, o que chamou a atenção dos críticos. Com o tempo, entendi que arte e vida se misturam. Aprendi que direcionar um artista para um conceito ou caminho específico é algo muito difícil, quase impossível.


Conte sobre sua faceta de pintura ao vivo.
Eu costumava pintar espontaneamente no meu ateliê, sem esboços ou planejamento. Para mim, a arte é um caminho para entender os mistérios da vida e do ser humano. Por isso, gosto de deixar a intuição falar mais alto e pintar de maneira gestual, acompanhando a respiração e o batimento cardíaco.

 

Com o tempo, me convidaram para realizar essas pinturas ao vivo, diante do público. Fiz várias performances durante a pandemia, em lives com músicos. Foi uma experiência espetacular para mim, misturar minha arte com outros gêneros, como música, poesia e literatura.

 

Já pintei ao vivo com Flávio Venturini, Beto Guedes, o violonista Celso Moreno, fiz no Clube da Esquina, com a Orquestra Opus e Beto Guedes; com o Cláudio Venturini, 14 Bis e Otello Borges.


E qual foi o maior público que já te viu pintando ao vivo?
Já fiz essa dinâmica tanto no Brasil quanto fora. Em Belo Horizonte, talvez o maior público tenha sido em um evento no Morro do Chapéu, com cerca de 400 pessoas.

Na ocasião, dois músicos do Palácio das Artes perguntaram o que eu queria ouvir enquanto pintava, e eu pedi “Eleanor Rigby”, dos Beatles. Foi uma experiência muito rica, com músicos e poetas, Tonico Mercador e Murilo Antunes, interagindo com minha pintura.

 


Você tem obras espalhadas em vários países, inclusive no Reina Sofía, na Espanha, um dos museus mais importantes do mundo.
Além do Museu Reina Sofía, minhas obras estão na Escola Superior de Música Reina Sofía, através da Fundação Reina Sofía. Eles adquiriram três obras da minha série “Pianista” para o acervo.

 


E na China? Como é que foi sua experiência com os chineses? E como você foi convidado?
Graças a Deus eu não sabia falar chinês, mas eu fiquei muito feliz de saber o poder mobilizador da arte, quer dizer, a minha linguagem artística foi totalmente entendida pelos chineses, pelos estudantes chineses. Então eles estranharam um pouco as cores, essa eloquência da apresentação da figuração humana – tudo é uma metáfora.

 


Foram empresários chineses que me convidaram. Um deles, inclusive, é empresário não só de artistas, mas também de jogadores de futebol, porque a China compra muitos jogadores. Ele também é empresário de músicos, incluindo o vencedor de uma versão chinesa do “The Voice”. Então, ele me convidou, junto com outro empresário taiwanês. Eu disse que só iria se a minha empresária – que também é minha esposa há 44 anos, Nina Pacheco – fosse comigo. Assim, fui para a China com os empresários patrocinando as passagens e hospedagens.

 


Moramos em Pequim por cinco meses e visitamos vários países: Nova Zelândia, Austrália, Taiwan, Japão e, claro, a China. Realizei muitas exposições em locais extremamente importantes, como museus e academias de pintura. Em Hangzhou, expus na maior academia de pintura da China, e depois no maior museu de Pequim. Também fiz uma exposição individual na maior galeria da cidade, que tem esculturas de Salvador Dalí em seu acervo.

 


Então, um dia você abria o jornal “China Daily” e, na primeira página, estava a notícia da minha exposição. Abria uma revista, e, ao lado de Mondrian e Francis Bacon, lá estava uma página inteira com uma obra minha.


Já que mencionou Mondrian, quem são os pintores que você admira?
Aqui em Minas Gerais, por exemplo, eu admirava muito a obra de um outro franco-atirador no sentido artístico, de ser autodidata, o Melo Nuno, ele já faleceu, mas sua pintura é muito valorizada hoje.

 

Também admirei muito o Lorenzato, de quem tenho três quadros em casa, todos com dedicatórias. Fomos grandes amigos, assim como ele foi amigo do Inimá de Paula e de vários outros artistas. No Brasil, citaria Lasar Segall, que embora não tenha nascido aqui, se naturalizou brasileiro e me influenciou muito no início da minha carreira.

 

Fora do Brasil, posso mencionar Joan Miró, que também me marcou profundamente. Inclusive, em Taipei, minha exposição foi aberta ao lado de uma gigantesca exposição de Miró. Eles trataram nossas exposições como de “dois ocidentais”, e eu pensei: “Miró é meu ídolo”.


Em 2016, houve um caso curioso: um rapaz deixou um par de óculos no chão de um museu de arte moderna em São Francisco, e as pessoas que não perceberam que ele tinha colocado ali começaram a fotografar achando que era uma obra de arte. Recentemente, algo semelhante aconteceu no Guggenheim, em Nova York, com um tênis. Como você explica essa situação?
Isso acontece porque a chamada arte contemporânea virou uma espécie de “ismo”, como o expressionismo. Hoje, fala-se em arte contemporânea como se fosse um movimento isolado, quando na verdade, toda arte feita por artistas que estão em sintonia com o seu tempo é contemporânea.

 

É a verdade daquele artista, refletindo sua vivência e contexto. Não podemos reduzir a arte contemporânea apenas a obras militantes ou politicamente engajadas, ou aquelas que buscam apenas causar impacto com estranhezas. Tudo que é sincero e afinado com o tempo é arte contemporânea, seja engajada ou não.

 

Se a obra for verdadeira, ela vai ressoar com outros seres humanos, seja sobre o que for. Minha própria arte, por exemplo, tem como base o humanismo. Agora, se alguém coloca um par de óculos ou um tênis e há um conceito muito forte por trás, isso pode ter valor, mas muitas vezes são apenas objetos bizarros para chocar. E o público tem todo o direito de interagir da forma que achar conveniente.


Já fiz uma brincadeira assim uma vez. Estava em um museu nos arredores de Melbourne, na Austrália. Eu não estava expondo lá, mas fui visitar o museu. Então, fiz uma performance: “É proibido morrer no museu”.

 

Nos museus, vemos sempre avisos como “proibido tirar fotos com flash”, “proibido comer”, “proibido fumar”, “proibido tocar nas obras”. Então, pensei: “E se for proibido morrer no museu?”. Se alguém tiver um ataque cardíaco lá, será que tem que sair para morrer? Resolvi simular isso. Peguei meu casaco, me cobri e caí no chão, como se estivesse morto.


Em poucos minutos, seguranças, diretores e outros funcionários vieram correndo. Quando destaparam meu rosto, eu disse: “É proibido morrer no museu?”. Meu produtor explicou que era uma performance e eles adoraram. Até pediram para usar as fotos na divulgação.


Você acha válido o consumo de arte por vias digitais ou a presença física é necessária?
Nasci em 1949, então, para mim, a pintura sempre foi algo quase clássico. A pintura tem movimento, ritmo, as cores vibram. Prefiro ver a obra ao vivo, na tela, para apreciar a pincelada, a textura. Por exemplo, qualquer pincelada do (Pablo) Picasso, eu sei como ele deu: vira o pincel, tira um pouco de tinta, dá luz onde é necessário.

 

Esse é o prazer de ver uma obra pessoalmente. Quando você digitaliza ou dá movimento artificial à pintura, você tira seu movimento natural, que já está ali. Transformar isso em uma animação ou um parque de diversão é mais para conquistar o público de forma fácil, mas acho que deseduca. Como disse Milton Nascimento: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”, e isso é válido.

 

No entanto, trazer a arte para um nível popular demais, em vez de educar o público, o deseduca. O público deve ser conduzido a apreciar obras mais complexas, como o jazz ou a música de Tom Jobim, em vez de rebaixar a arte a algo simples.


Qual é o papel da Nina Pacheco na sua carreira?
Enorme. Ela é capricorniana, muito organizada, honesta e rigorosa com a agenda. Eu sou taurino, não tenho medo de trabalhar, então ela junta minha criatividade com a sua organização. Ela cuida de tudo, não permite que ninguém me passe para trás.

 

Em Pequim, por exemplo, estávamos negociando com empresários em várias línguas. Quando eles me apresentavam contratos em chinês, eu dizia: “Nina, cuida disso.” Ela sempre foi uma excelente gestora e também é muito querida no mundo da arte.

 


Em 60 anos de carreira, como você vê sua trajetória? E onde sua pintura estará daqui a 10 anos?
Essa é a primeira vez que alguém me pergunta isso. No meu livro, o crítico Jacob Clinton escreveu algo que me deixou muito honrado: “Fernando Pacheco escutou o canto das sereias da sociedade de consumo, mas não precisou ser amarrado para resistir.”

 

Eu mantenho minha trajetória, sem ceder a modismos ou pressões do mercado de arte. Meu leque estético é amplo, mas minha pintura sempre volta ao seu âmago, ao universo humano. Ao longo de décadas, explorei muitos territórios estéticos, mas minha pintura sempre retorna ao lugar de onde partiu: o território do humanismo, da paz, do amor, e da não-violência.


*Estagiária sob supervisão da subeditora Regina Werneck

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