O sonho de uma garota se tornou realidade por meio de outra menina. De certa maneira, foi assim que o documentário “As últimas mulheres do mar” se concretizou. O longa estreia nesta sexta (11/10), no Apple TV+, depois de vencer o prêmio NETPAC (dedicado a produções asiáticas) do Festival de Toronto (TIFF), no mês passado.

 

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A menina que sonhou revelar ao mundo uma tradição exclusivamente feminina do país de sua família é a diretora coreano-americana Sue Kim. A outra, que rapidamente embarcou na história, é a paquistanesa radicada no Reino Unido Malala Yousafzai, Nobel da Paz em 2014 – aos 17 anos, ela se tornou a mais jovem vencedora do respeitado prêmio.

 

 



 

Entre as histórias destas duas meninas, hoje mulheres, está a de várias outras, senhoras de 60, 70, até 80 anos, que mantêm em Jeju, a maior ilha sul-coreana, a tradição que pode se perder em um futuro próximo.

 

 

 


Há várias décadas, não se sabe exatamente o ponto de origem, existem em Jeju as chamadas haenyeo. Elas são mergulhadoras que colhem frutos do mar diariamente. A atividade econômica traz uma peculiaridade: o mergulho é feito sem oxigênio.

 

Alto risco

 

No auge da atividade, na década de 1960, havia cerca de 30 mil haenyeos na ilha. Atualmente, este número não passa de 4 mil. Jeju conta, há 15 anos, com uma escola de formação. Porém, das 840 alunas que passaram por lá, não mais de 5% se tornaram haenyeos.

 

O risco é alto, pois são vários mergulhos diários só no fôlego – jornadas de trabalho vão até sete horas. Além do mais, por muito tempo as haenyeos, mantenedoras de suas próprias famílias, foram estigmatizadas. O interesse das jovens pela atividade, que em 2016 foi inscrita na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco, vem caindo consideravelmente.

 

“Quando tive as primeiras conversas com elas, descobri que acreditam que esta será a última geração de haenyeos. Então, a ideia do filme, antes apenas um sonho, se tornou algo urgente, para documentá-las enquanto ainda as temos”, diz Sue Kim. A cineasta conheceu a cultura haenyeo quando tinha 8 anos – “me apeguei a elas porque representavam uma versão da feminilidade coreana a que eu poderia aspirar”. Por muito tempo, tentou fazer o filme decolar, sem sucesso.

 

Em 2021, Malala, recém-graduada em filosofia, política e economia pela Universidade de Oxford, firmou parceria com a Apple para a criação de conteúdo por meio de sua produtora, a Extracurricular. “As últimas mulheres do mar” foi um dos primeiros projetos que teve em mãos – ela assina o longa como produtora.

 

“Parte principal do meu ativismo tem sido contar histórias. Foi assim que comecei aos 11 anos (escrevendo sob pseudônimo para um blog da BBC sobre como era ser uma estudante no Vale do Swat, Paquistão, ocupado pelo Talibã). Foi chocante para mim, que trabalho com direitos e educação das mulheres por tanto tempo, não saber realmente nada sobre essas mulheres, que desafiaram e redefiniram as normas”, afirma Malala ao jornal Estado de Minas.

 

A produtora Malala Yousafzai, vencedora do Nobel da Paz em 2014, com a cineasta Sue Kim durante entrevista no YouTube

Youtube/reprodução

 


História de mulheres contada por mulheres, o filme tem equipe majoritariamente feminina. Em cena, descobrimos a vida de mães e avós que diariamente se reúnem, colocam o macacão de mergulho e descem a até 10 metros. No retorno, fazem um som único, típico das haenyeos.

 


Ainda que em Jeju a atividade seja de mulheres maduras, o filme apresenta duas jovens haenyeos, que vivem a muitos quilômetros de distância, na ilha de Geojedo. As duas personagens, uma delas mãe de três crianças que abandonou a vida no escritório para se tornar mergulhadora, utilizam as redes sociais para divulgar sua atividade.

 


“Com a presença das jovens no filme, pensei que ele pudesse trazer um vislumbre de esperança, que mulheres como elas poderiam manter a tradição viva”, diz Sue Kim. Só que durante as filmagens, veio a notícia que mudaria tudo.

 

Filme de Sue Kim mostra a mobilização das mergulhadoras haenyeos contra o despejo de água radioativa no Pacífico pelo governo japonês

Apple TV

 


O Japão começaria, em agosto de 2023, a lançar no Oceano Pacífico a água radioativa tratada da usina nuclear de Fukushima, destruída em 2011. Em sete meses, tal material atingiria a península coreana. “Então, a questão da água de Fukushima se tornou o conflito central do filme”, acrescenta a diretora.

 

Protesto na ONU

 

O longa acompanha haenyeos, velhas e jovens, unidas em protestos contra a decisão japonesa. Soon Deok Jang, líder informal em Jeju, faz apelo pela não liberação das águas em uma sessão das Nações Unidas em Genebra, Suíça. Ela, que só domina o alfabeto coreano, praticou seu discurso foneticamente em inglês.

 


“Filmar na ONU não é fácil, mas como Malala é frequente e muito respeitada, sua reputação abriu, literalmente, as portas para nós”, conta Sue Kim.

 


Malala acrescenta: “Não importa quantos anos você tem e em que estágio da vida está. Se acredita que um problema precisa de atenção urgente, você precisa falar. Quando penso na situação das meninas no Afeganistão, proibidas de estudar, e das mulheres impedidas de ter acesso ao trabalho e à vida pública, o que pode realmente nos dar alguma esperança? São as histórias de outras mulheres que tentaram redefinir em que tipo de comunidade querem viver.”

 


“AS ÚLTIMAS MULHERES DO MAR”


(EUA, 2024, 87min., de Sue Kim) – O documentário estreia nesta sexta-feira (11/10), no Apple TV+

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