A primeira cena de “Disclaimer” demonstra sua ousadia e seriedade. Em uma premiação, a documentarista britânica de origem iraniana Christiane Amanpour vai a uma homenagem ao trabalho de Catherine Ravenscroft, personagem de Cate Blanchett. Ela é a imagem do sucesso, linda, chique e radiante, ao lado do marido, personagem de um Sacha Baron Cohen quase irreconhecível.
“Cuidado com a narrativa e a forma”, alerta Amanpour em seu discurso. “Sua obra pode nos aproximar da verdade, mas também pode ser usada como arma com grande poder de manipulação. O trabalho de Catherine revela algo muito problemático e profundo: nossa própria cumplicidade com alguns dos pecados sociais mais tóxicos de hoje.”
O público não chega a conhecer o trabalho de Catherine, nem que histórias são essas que ela conta com tanto talento. A trama, na verdade, é a desconstrução daquela personagem, colocada em um pedestal na abertura para, claro, ser arrancada de lá. Catherine será derrubada de todas as maneiras que uma pessoa pode ser derrubada.
Com episódios semanais disponíveis no Apple TV+, essa é uma adaptação ambiciosa do romance de mesmo nome lançado em 2015 pela escritora inglesa Renée Knight, ex-diretora de documentários e roteirista de TV. Traduzido como “Difamação”, o livro acaba de ser lançado pela Companhia das Letras no Brasil.
Pontos de vista
Ele induz a questões importantes: que informações nós temos de verdade, e quais apenas acreditamos ter? Quem fornece essas informações? Como? O que ganham em troca? Essas perguntas estão sempre no pano de fundo da série, que deixa a personagem principal numa posição quase de coadjuvante conforme o plano de seu inimigo, Stephen Brigstocke (Kevin Kline), entra em prática.
A série assume três pontos de vista, e cada um deles é narrado por uma voz distinta, que não a mesma dos atores. O primeiro é de Brigstocke, aposentado que parece ter desistido da própria vida depois da morte da mulher, há nove anos. Eles já tinham perdido o único filho, Jonathan.
Quando decide revirar as coisas guardadas pela esposa Nancy (Lesley Manville), descobre que ela deixou um livro na gaveta, inspirado na última viagem de seu filho a Veneza, onde ele acaba se afogando.
O destino o leva a canalizar todo o seu ódio, renovado na forma de um desejo de vingança, em Ravenscroft. Ela apresenta sua versão como o segundo ponto de vista da história, o de quem sofre as consequências da difamação que dá nome à série.
Ao lado do marido Robert (Baron Cohen) e do filho rebelde, Nicholas (Kodi Smit-McPhee), Catherine mora em uma casa linda em Londres, está no auge da carreira e os estúdios de Hollywood disputam entre si para adaptar seu trabalho em um filme.
Viagem pela Europa
O terceiro ponto de vista é o de Nancy, narrado no livro que provoca a ira do marido, agora viúvo e sem nada a perder. Nele, um casal muito jovem e apaixonado transa loucamente em trens, debaixo de pontes e em uma gôndola, em uma viagem pela Europa daquelas que os jovens que ainda não estão prontos para encarar a vida adulta costumam fazer no Primeiro Mundo.
O jovem é o filho deles, Jonathan (Louis Partridge). E sua história esbarra na da jovem Catherine, nesta parte interpretada pela atriz australiana Leila George.
O equilíbrio (e os muitos desequilíbrios) entre as três narrativas são o que se ressalta na série. A tensão é permanente, o espectador nunca sabe se está depositando suas conclusões em terra firme ou na areia movediça. As cenas de sexo e violência são explícitas, servindo mais para plantar dúvidas no espectador que do para explorar nosso prazer banal de ver sangue e gozo.
Cuarón escreve e dirige todos os sete episódios, gravados ao longo de um ano. Apesar de contar uma história irresistível, impossível de não provocar o desejo de tentar adivinhar o final, o cineasta parece mais interessado em interrogar a construção da opinião pública, tão frequentemente moldada por manchetes descuidadas e postagens em redes sociais. É série para ver mais de uma vez, com os dois olhos bem abertos.
Festival de Veneza
“Disclaimer” estreou em agosto passado, no Festival de Veneza. O diretor mexicano Alfonso Cuarón e o evento italiano têm longa história em comum: em 2001, quando lançou “E sua mãe também”, filme que revelou Gael García Bernal e Diego Luna, Cuarón levou o prêmio roteiro, e os protagonistas dividiram o Prêmio Marcello Mastroianni pelas atuações.
Em 2006, o longa “Filhos da esperança”, com Clive Owen e Julianne Moore, foi premiado pela fotografia. Em 2013, “Gravidade”, a ficção científica em 3D estrelada por George Clooney e Sandra Bullock, abriu o festival. Mais tarde, foi premiado com sete estatuetas do Oscar, inclusive a de melhor filme e melhor diretor.
“DISCLAIMER”
• Série dirigida por Alfonso Cuarón. Primeira temporada, com sete episódios. Disponível na plataforma Apple TV+.