A três meses do início das filmagens de “Malu”, seu primeiro longa-metragem, o diretor Pedro Freire se viu diante de um impasse: a atriz que faria a personagem-título teria de deixar o projeto, por problemas de saúde. Sem tempo a perder, começou a levantar alguns nomes.
Um deles era o de Yara de Novaes, que havia dirigido na novela “Um lugar ao sol” (2021-2022). Ele a conhecia pouco, mas era uma atriz de teatro, como a protagonista do filme.
“Nem sei por que o Pedro ficou comigo na cabeça, eu fiz duas cenas com ele (na novela). Acho que são esses sortilégios, essas alquimias de que a Juju fala”, diz Yara de Novaes, a principal razão pela qual “Malu”, que chegou nesta semana aos cinemas, é tão visceral e humano. Freire realiza um retrato – bonito e triste em igual medida – inspirado na vida de sua mãe, a atriz Malu Rocha (1947-2013).
Com a carreira diretamente ligada aos palcos paulistanos durante a ditadura militar (trabalhou com Plínio Marcos e Zé Celso), Malu teve dois filhos, Isadora (com o ator Zanoni Ferrite) e Pedro (com Herson Capri). O filme a encontra em seus últimos anos, vivendo numa casa de reboco numa região do Recreio dos Bandeirantes que estava começando a se favelizar.
Embate
A atuação de Yara é o coração do drama, mas ela não está sozinha. Ao ficcionalizar a história de sua mãe, Freire a colocou em um embate com duas mulheres. Sua mãe, Lili, interpretada por Juliana Carneiro da Cunha (a Juju a quem Yara se referiu), e Joana, sua filha, papel de Carol Duarte.
As três, que nunca tinham trabalhado juntas, foram premiadas no Festival do Rio. “Malu” saiu com os troféus de melhor longa de ficção, roteiro (também de Freire), atriz (Yara) e atriz coadjuvante (premiação dupla para Juliana e Carol). Nesta semana, o filme levou também o Prêmio Paradiso, da Mostra de São Paulo. A única presença masculina no filme é Tibira (Átila Bee), amigo de Malu, negro e gay, motivo das brigas que ela tinha com a mãe.
O ponto de partida do filme foi a morte da atriz. “Isadora e eu decidimos fazer um velório no Teatro Oficina, porque ela era anticatólica, não gostaria de ser velada numa capela. Foi a primeira vez que teve um velório no Oficina. Pintamos o caixão de amarelo, colocamos fotos dela espalhadas no chão, distribuímos vinho para os convidados. Foi uma coisa bem bonita e eu pensei que precisava fazer um filme sobre ela”, recorda Freire.
Entre a primeira fagulha e o início do projeto, passaram-se três anos. “Rapidamente, eu entendi que não podia fazer um filme para expurgar os meus demônios”, conta. A partir das memórias, dele e de Isadora, Freire escreveu o roteiro. “Sintetizei Isadora e eu na Joana, pois ficava mais ajustado. Também me ajudava a distanciar um pouco e olhar para ele como um filme para o público, e não para mim.”
Casa inacabada
A narrativa é ambientada nos anos 1990. Malu está longe dos palcos há muito, vive na casa que não conseguiu terminar. Quer fazer ali um centro cultural para a comunidade local. O dinheiro é apertado, mas ela se vira com seus livros, discos e baseados. A relação é conturbada com a mãe. Depois de uma temporada na França, Joana retorna ao Brasil. Malu sonha muito, planeja sem parar, mas pouco sai do lugar. É basicamente nesta locação, localizada em Guaratiba e baseada na casa real, que a história se desenvolve.
Juliana Carneiro da Cunha explica os dois lados de Lili. “Pedro me contou que a avó era uma pessoa muito delicada, assim, muito fofinha. Mas, na realidade, era uma senhora terrível, racista, reacionária, vingativa, violenta. Então foi assim que ela veio”, conta a atriz, radicada na França desde 1989.
“Foi um milagre da alquimia o que aconteceu entre Carol, Yara, Átila e eu. Não nos conhecíamos e, no segundo seguinte, estávamos com um prazer imenso de atuar. Todos somos do teatro, então o Pedro ficou um pouco assustado com essa expressão teatral diante de uma câmera de telefone (durante os ensaios, o diretor gravou o filme com os atores em seu celular)”, comenta Juliana.
Carol diz como trabalhou sua personagem. “Pedro me deu muita liberdade para criar essa Joana, que não fosse uma mimese dele ou da Isadora. É muito interessante o quanto o Pedro consegue trazer da memória dele e, ao mesmo tempo, levar para a ficção, deixando a história mais universal e não só uma síntese das próprias lembranças.”
Yara conhecia pouco o trabalho de Malu Rocha. “O Pedro me liberou uma entrevista longa que foi feita com a Malu na casa dela, que seria na época que eu faria a personagem. Foi muito importante para mim, porque pude compreendê-la”, diz Yara.
Atriz, diretora e professora belo-horizontina radicada em São Paulo, Yara fez pouco cinema. “Comecei a ter muitos braços no teatro, não sobrava espaço. Muitas vezes era chamada para teste e nem ia, pois ou estava dirigindo, ou em cartaz”, diz. Cofundadora, ao lado de Débora Falabella e Gabriel Paiva, do Grupo 3 de Teatro, Yara deu aulas de teatro em universidades por 25 anos.
“Eu dava aula na Faculdade de Direito da FAAP na época em que o bolsonarismo estava começando a emergir. Ideologicamente, não era fácil estar em sala de aula. A frustração era muito grande, lembro que subia a escada para a sala com taquicardia.” Débora já havia falado para Yara que ela deveria pedir uma licença, pois daí teria um tempo mais livre. “Quando tirei a licença e passei a aceitar os testes, as coisas começaram”, diz Yara.
“MALU”
(Brasil, 2024, 100min.). Direção: Pedro Freire. Com Yara de Novaes, Carol Duarte e Juliana Carneiro da Cunha. O filme está em cartaz nos cines Centro Cultural Unimed-BH Minas (Sala 2, 16h); Cidade (Sala 3, 16h30, 18h40 e 20h50); Ponteio 2 (17h10); UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 17h).