Sem se dobrar à ditadura militar, Eunice Paiva (Fernanda Torres) exige posar sorrindo com os cinco filhos para revista, após o traumático desaparecimento do marido -  (crédito: Videofilmes/divulgação)

Sem se dobrar à ditadura militar, Eunice Paiva (Fernanda Torres) exige posar sorrindo com os cinco filhos para revista, após o traumático desaparecimento do marido

crédito: Videofilmes/divulgação

 

 

No mar, enquanto nada, Eunice Paiva (Fernanda Torres) observa o voo rasante de um helicóptero militar. Estamos no Rio de Janeiro do final dos anos 1960 e iniciamos o mergulho no passado sombrio do Brasil da ditadura pelos olhares de uma dona de casa, mãe de cinco filhos, casada com o ex-deputado Rubens Paiva. A abordagem intimista para um fato histórico, que se detém nas consequências de uma arbitrariedade que silencia e dilacera uma família, é o maior trunfo – e triunfo – de “Ainda estou aqui”, o novo filme de Walter Salles.

 

 

Depois da aclamação em setembro no Festival de Veneza, quando ganhou 10 minutos de aplausos e recebeu o prêmio de Melhor Roteiro, além de elogios entusiasmados da crítica internacional nas exibições, o filme escolhido pelo Brasil para tentar uma indicação ao Oscar estreia nesta quinta-feira (7/11) em Belo Horizonte. O longa se baseia no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice.

 

 

“O sequestro e assassinato de Rubens Paiva são uma consequência da violência de Estado que se instalou no país em 1964 e se agravou depois de 1968”, conta Salles, em entrevista ao Estado de Minas. “Percebi que a história dos Paiva é a de um projeto de país que foi brutalmente interrompido. Na casa de Rubens e Eunice pulsava o desejo de um país livre, com uma identidade independente, essencialmente brasileira. Foi esse Brasil possível que foi interrompido pelo golpe militar e pela escalada de sua violência”, complementa.





A casa da família Paiva, na zona sul carioca, é metáfora do país. Inicialmente solar, cheia de música, festa, dança e sonhos, a residência se transforma num cenário de filme de terror depois de ser vigiada e ocupada por agentes da ditadura militar.

 


Com as cortinas fechadas, prevalece a atmosfera de opressão, mas sem gritos ou demonstrações ostensivas de violência. Não era necessário. As cenas explícitas de tortura estavam sendo praticadas longe dali, em um quartel do Exército, para onde Rubens Paiva foi levado em janeiro de 1971 e nunca mais voltou.

 

“Tem uma hora que ninguém mais fala dentro daquela casa, que passou a ser totalmente vigiada”, lembra Fernanda Torres. A situação permanece até a família Paiva, sem o mantenedor, voltar para São Paulo e desfazer o lar carioca. “A casa foi esvaziada, mas acho que hoje tem muita gente dentro dela...”, especula a atriz, com um sorriso irônico.

 

 

Walter Salles tinha 14 anos e, como amigo de Nalu, uma das irmãs de Marcelo, frequentava a casa dos Paiva. “Uma das minhas lembranças mais fortes de adolescência é dessa casa onde as portas e janelas estavam sempre abertas, onde turmas de diferentes idades se encontravam para falar de política, do Brasil, de música”, revela. “A gente gravitava para lá nos finais de semana. No dia 20 de janeiro de 1971, um feriado, demos de cara com essa casa fechada”, lembra o cineasta.

 

Eunice e Rubens Paiva sorriem em charrete, com pombos no colo

Eunice e Rubens Paiva: casamento feliz brutalmente interrompido nos anos 1970 pela ditadura militar

Reprodução

 

No roteiro premiado de Murilo Hauser e Heitor Lorega, as recordações do cineasta foram amalgamadas às histórias contadas no livro lançado em 2015 e às lembranças das irmãs do escritor.

 

“O livro é um registro de maturidade, de uma profunda e dilacerante beleza, em que Marcelo reconhece que sua mãe tinha sido a heroína silenciosa da sua família. No entanto, não foi suficiente para despertar a certeza de que eu deveria realizar o filme”, reconhece o diretor.

 

“O que finalmente me libertou foi o fato de Marcelo acompanhar o desenvolvimento do roteiro, uma colaboração que se deu de forma próxima, respeitosa: confiamos uns nos outros”, detalha Salles, antes de resumir: “Marcelo reabriu aquela casa, me fez lembrar de tantas coisas que haviam permanecido obscuras para mim.”

 

Filme de família

 

“Ainda estou aqui” marca o reencontro do diretor com Fernanda Torres, que havia protagonizado os longas “Terra estrangeira” e “O primeiro dia”.

 

“É um filme sobre uma família, realizado por uma família de cinema, composta por Fernanda Torres e pela extraordinária Fernanda Montenegro, por Daniela Thomas, por mim mesmo. E que agora se amplia com novos cúmplices como Selton e outros atores e artesãos supertalentosos que abraçaram o projeto”, conta o cineasta.

 

 

Novo “cúmplice” na trupe de Salles, Selton Mello acredita que seu trabalho de interpretar Rubens Paiva “foi mais espiritual do que técnico”. “Não tem vídeos dele nem eu fiquei querendo ouvir áudios para ver como ele falava. O que mais me interessava era o espírito desse homem: o que ele emanava, a impressão que causava nos amigos, as lembranças que deixou para os filhos”, conta.

 

A partir das recordações das pessoas próximas, o ator entendeu que encarnaria uma figura “luminosa, marcante, carismática”. “Então, a minha missão é ter uma presença marcante o suficiente para, quando ele é levado, isso ser uma experiência de perda e saudade para a Eunice e para o público”, detalha ao Estado de Minas.

 

Sintonia



O tom preciso da direção, que encontrou a sintonia entre os atores mais conhecidos e os menos experientes, como as crianças e adolescentes que interpretam os cinco filhos de Rubens e Eunice, é uma das virtudes de “Ainda estou aqui”. Há outros acertos notáveis, como a recusa de qualquer sublinhamento do drama familiar por meio de diálogos reiterativos ou de trilha sonora insistente, e a decisão de mudar o ponto de vista do livro para ressaltar o protagonismo de Eunice.

 

Mas o grande mérito do filme está na convicção do diretor e de sua equipe, ou melhor, de sua “família de cinema”, de que as imagens – de Super 8, de álbuns de fotografias, de uma câmera inicialmente inquieta e depois tão perplexa quanto a protagonista, de um olhar desconfiado, aterrorizado, inconformado, enfurecido, aflito, desesperançado, aliviado, desvanecido, de súbito aceso e novamente apagado, graças às atuações antológicas de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro – têm força para reavivar a história de quem, vítima de Alzheimer, perdeu as próprias lembranças nos últimos anos de vida.

 

Eunice Paiva se foi em dezembro de 2018 aos 86 anos. Mas na literatura, e agora também no cinema, ela ainda está aqui. Memória não morrerá.

 

“AINDA ESTOU AQUI”


(Brasil/França, 2024, 136 min.). De Walter Salles, com Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro, Bárbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha, Camila Márdila. Estreia em BH nesta quinta-feira (7/11), em salas dos shoppings BH, Boulevard, Cidade, Contagem, Del Rey, Diamond, Itaú, Minas, Monte Carmo, Pátio, Ponteio e Via, além do UNA Cine Belas Artes.