“Eu me virei sozinha/ Comi o pão todinho/ Que o diabo amassou”. Alaíde Costa pega emprestado os versos que gravou em “Aos meus pés” – letra de Francisco Bosco para a melodia de João Bosco – para falar de sua trajetória. “Eu comi mesmo para chegar até aqui. É bom, porque no final da vida veio o reconhecimento”, afirma a cantora e compositora, que vai completar 89 anos em 8 de dezembro.
E não há chance de parar. Alaíde está com álbum novo na praça, “E o tempo agora quer voar”, segundo título da trilogia produzida por Emicida e Marcos Preto iniciada há dois anos, com “O que meus calos dizem sobre mim”.
Com repertório quase todo inédito e gravado com baixo acústico, violão de sete cordas e bateria (a cargo de Pupillo, que assinou as duas produções), os dois trabalhos vêm colocando a cantora no lugar em que sempre deveria ter estado. “Ficava bem marginalizada, pois as pessoas não entendiam que por ser negra, não cantava sambão”, diz ela.
Alaíde é a principal atração da noite de abertura do Urban Afro Jazz, festival que estreia nesta terça-feira (19/11), na Autêntica, em Belo Horizonte. Até quinta-feira (21/11), várias atrações passam pelo evento, que busca retomar o protagonismo negro no gênero. Não custa lembrar que o festival estreia na Semana da Consciência Negra.
Também fazem show o pianista Jonathan Ferr, com sete instrumentistas; a cantora e pianista Maíra Freitas, filha de Martinho da Vila; as bandas Aláfia, de São Paulo, e Delvon Lamarr Organ Trio, de Seattle, nos EUA; e o trombonista carioca Josiel Konrad.
De BH, serão duas atrações: o trombonista Leonardo Brasilino, conhecido nos carnavais pelo bloco Me Beija Que Eu Sou Pagodeiro (vai apresentar repertório de seu álbum autoral, “Terra brasilinis”), e a cantora e pianista Glaw Nader, que está à frente do Urban Afro Jazz. Ao lado de banda de 11 músicos, ela vai apresentar o show “Tempo de amor”, baseado no álbum homônimo (2023), tributo a Baden Powell.
Para abrir o evento, foi convidada, para uma bênção, Mametu Muiandê. Conhecida como Mãe Efigênia, é a liderança máxima da comunidade quilombola Manzo Ngunzo Kaiango, no Bairro de Santa Efigênia.
Também docente – é professora do bacharelado em música popular na UFMG –, Glaw Nader conceituou o projeto a partir de sua área de pesquisa, “a influência afrodiaspórica na música das Américas”, ela conta. A partir do mestrado sobre a improvisação vocal na Copacabana das décadas de 1950 a 1970, ela começou a investigar a “fricção” entre jazz e samba. “A primeira questão é que ambos têm, claramente, origem afrorreligiosa”, diz.
Uma inquietação a acompanhava há algum tempo. “No Brasil, muitos festivais de jazz têm quase sempre artistas brancos. Como se pode falar de um gênero negro com line up branco?”. Para montar o elenco da primeira edição, além do recorte com artistas negros, ela ficou atenta a nomes “em que a plateia se sinta reconhecida”.
O Urban Afro Jazz vai promover na Autêntica duas tardes de debate. E na próxima semana, já com viés mais acadêmico, será realizado o simpósio virtual “Afro-Sonâncias: Estudos musicais e identidade negra”, com pesquisadores de Minas, Bahia, Pernambuco, Rio e São Paulo.
Com carreira que, formalmente, completa 70 anos em 2025, Alaíde Costa conta que só mais recentemente vem se sentindo incluída. “Antes não me convidavam, acho que por causa do tipo de música que canto. Fazia uma coisa aqui, outra ali, mas nada com muita frequência.”
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Mesmo com a cancha de palco e estúdio que tem, Alaíde ainda sente aquele frio na barriga todas as vezes em que entra em cena. “Fico muito nervosa, pois a gente nunca sabe o que nos aguarda. Só fico à vontade a partir da terceira música”, finaliza.
Painéis e simpósio
O festival promove dois painéis na Autêntica, nesta quarta e quinta-feira (20 e 21/11), às 16h, com entrada franca. No primeiro dia, o tema é “De raízes ao futuro: Como o jazz se reinventa”, com Jonathan Ferr, Josiel Konrad e Glaw Nader.
Na quinta, o debate será “Cultura negra no palco: O papel dos festivais pretos”, com quatro produtores de eventos: Bia Nogueira (IMuNe – Instante da Música Negra), Glaw Nader (Urban Afro Jazz), Rosália Diogo (FAN – Festival da Arte Negra) e Vitor Magalhães (Palco Hip Hop).
Na semana que vem, de 26 a 28/11, será a vez do simpósio on-line “Afro-sonâncias: Estudos musicais e identidade negra”, no canal do Urban Afro Jazz no YouTube. O link estará disponível nos dias do encontro na página do Instagram @urbanafrojazz
PROGRAMAÇÃO
• Terça (19/11)
20h – Mametu Muiandê
21h – Alaíde Costa
23h – Aláfia
• Quarta (20/11)
20h – Maíra Freitas
21h – Jonathan Ferr
23h – Josiel Konrad
• Quinta (21/11)
20h – Leonardo Brasilino
21h – Glaw Nader
23h – Delvon Lamarr Organ Trio
URBAN AFRO JAZZ
Desta terça (19/11) a quinta-feira (21/11), a partir das 21h, na Autêntica (Rua Álvares Maciel, 312, Santa Efigênia). Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia-entrada). À venda na plataforma Sympla.