Em “O segundo ato”, duas figuras se superpõem: a do ator e a de seu personagem. O que leva a pensar, de imediato, que o filme de Quentin Dupieux é dedicado a seus atores, ou ao ofício de ator que eles aqui representam.

 

A ação se abre com um uma longa cena, um longo travelling em que conversam David (Louis Garrel) e Willy (Raphaël Quenard), enquanto vão ao encontro com uma moça que está interessadíssima em David, mas não é correspondida. David pede ao amigo que jogue charme sobre a moça e a seduza.

 



 

Willy teme entrar numa roubada. O que teria de errado essa moça para David fazer tal pedido? Será feia? Não. Será transgênero? Terá problema neurológico ou coisa assim? Willy começa aí a derramar um ideário bem machista, que parece repugnar a David.

 

Mas será que Willy é Willy? Ou será o personagem do filme que estão rodando e eles ensaiam seus papéis? É nesse desdobramento de ator em personagem e vice-versa que “O segundo ato” evolui.

 

 

Na cena seguinte estão Florence (Léa Seydoux) e seu pai Guillaume (Vincent Lindon). Florence está ansiosa porque pretende apresentar a Guillaume aquele que julga ser o homem de sua vida, David, justamente. O mesmo ritual se repete: depois de um tempo sabemos que eles também são atores que estão fazendo um filme, o mesmo filme.

 

 

 

A arte de Dupieux consiste em fazer dessa duplicação um jogo interessante, que de certa forma nos coloca diante do que é ser ator, isto é, de todo o tempo assumir uma segunda personalidade como se fosse a sua.

 

Parece óbvio, mas fazer isso com humor não é tão simples assim: é como se estivesse torcendo e depois destorcendo os seus personagens, que se desdobram e interagem nos dois níveis, no do ator e no do personagem.

 

Mas quem é quem? Depois de algum tempo as duas personas se confundem, tanto mais que o filme é “escrito e dirigido por IA”, ou seja, inteligência artificial, dispensando a presença de técnicos humanos nas redondezas. Logo, passada a tensão inicial sobre quem é quem, o espectador pode se entregar a esse jogo sem constrangimento e, afinal, rir, porque se trata de uma comédia.

 

 

No entanto, e David vai expor o que talvez seja a ideia central do filme, trata-se de discutir o real e o fictício. Ou, mais especificamente, essa qualidade de um invadir o outro: de nossas fantasias serem tão reais quanto as coisas concretas. O teatro e o cinema, sobretudo o cinema, são lugares onde se entrelaçam essas instâncias, onde se espelham, e o humor suave que o filme transmite dá conta dessa qualidade do humano com desenvoltura e sem se dar maior importância: talvez sejamos seres suspensos entre ficção e realidade.

 

 

Nessa equação sobressai, evidentemente, o ator; evidência dessa duplicidade. E o mínimo a dizer é que, do começo ao fim, o quarteto central de atores responde muito bem ao que lhes é pedido. No mais, diálogos que colocam em questão misoginia, racismo, machismo, etc mostram-se tão mais pertinentes quanto evitam tratar essas palavras, ou o que elas subentendem, com a gravidade excessiva que arruína com frequência causas justas.

 

Nouvelle vague

 

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Se filosofa sem recorrer ao filosofês, “O segundo ato” transmite uma vitalidade sem afetação, algo que lembra os tempos da nouvelle vague, aquele descompromisso com “a arte” que fez dela um movimento artístico tão central. A vitalidade que se sente em Dupieux, de que faz parte o prazer com que tudo parece ser feito, inclusive a atuação dos atores, pois é ao ator que o filme entroniza como centro do filme (e talvez do cinema).

 

Curioso notar que o filme de Dupieux está na mesma chave do argentino “O que queríamos ser”, de Alejandro Agresti. Desenvolve uma ideia similar, mas envereda mais para o fantástico (à moda argentina, aliás), na medida em que os dois personagens desenvolvem um jogo curioso de só se apresentarem ao outro como um ser inventado. E tudo parte da discussão sobre se o ator se despersonaliza à custa de desenvolver dentro de si tantas personalidades fictícias.

 

São assuntos bem atuais: o que somos e o que representamos, o que queremos ser e o que somos. Parece que no século 21 também as identidades se repartem, se estilhaçam e pedem para ser novamente expostas. Se não é um problema filosófico, é certamente um belo problema artístico.

 

“O SEGUNDO ATO”


(França, 2024, 80 min.) – De Quentin Dupieux, com Léa Seydoux, Louis Garrel e Vicent Lindon. Em cartaz nesta terça (19/11), às 14h, no Centro Cultural Unimed-BH Minas. O longa faz parte do Festival Varilux do Cinema Francês, que chegará ao fim nesta quarta-feira (20/11). Confira a programação do evento no site do Varilux.

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