Pai e filha pescam juntos em um riacho. Do descamar de um peixe ao uso da vara de pescar, diversas tradições são encenadas. Predomina o tato, que unifica os envolvidos. De olhar íntimo, atento aos toques, gestos e microexpressões, "Todas as estradas de terra têm gosto de sal", em cartaz no cinema, é guiado por sua palpabilidade.
O filme acompanha a vida de Mackenzie, jovem negra de origem humilde que vive no interior do Mississipi, no Sul dos Estados Unidos. A narrativa atravessa diferentes décadas de sua vida, dissociada de uma progressão comum. Funciona como uma espécie de mosaico, formado pelas relações, vivências e simbologias que rodeiam a garota e seus entes próximos.
Nesse sentido, a direção da estreante Raven Jackson se liberta da necessidade de construir uma estrutura com começo, meio e fim – o que não se deve só à falta de linearidade temporal, mas ao desenvolvimento emocional das personagens.
Com poucos diálogos, o longa confia em seus códigos visuais. Investe em uma coreografia física que permeia os saltos entre as atrizes – Kaylee Nicole Johson, Charleen McClure e Zainab Jah – que interpretam "Mack" e suas interações com familiares e amigos.
Do acariciar de um rosto ao erguer de um recém-nascido, as mãos surgem como símbolo fundamental no jogo entre a câmera e os atores. Elas preservam ações pessoais que escapam aos roteiros ou outras ferramentas do estudo da natureza humana. São signos que dominam o corpo como um todo, evocando danças e perambulações.
Embora não flertem inteiramente com o improviso, as sequências transmitem naturalidade, como se a lente tivesse que se ajustar ao elenco, e não o contrário. Permitem não só a comunicação entre passado, presente e futuro, como a continuidade de um ser interpretado por rostos diferentes.
A celebração entre uma mãe e sua filha, em uma festa familiar, ecoa na cerimônia de um casamento posterior. Várias temporalidades se condensam em um mesmo espaço, modelado pelos sentimentos dos que passaram por ali. Pouco importa se os intervalos entre a infância e a velhice são abruptos ou se é difícil acompanhar os que vêm e vão. São os detalhes e as trocas que mantém a unidade.
Se pensarmos em seu contexto histórico e social, a produção imagina um lugar distante das hegemonias herdadas por americanos sulistas. Não é como se Jackson ignorasse as dificuldades enfrentadas por famílias negras, especialmente naquela região do país, mas a cineasta se recusa a desenvolver figuras que partam de uma submissão pressuposta e traça a sua força política e racial por outros caminhos.
Retratos vivos se transformam no contato com uma diversidade de texturas. Os grãos da terra molhada, a grama verde sobre cabelos jogados no chão, as folhas levadas pelo vento, são imagens que se repetem para manter conexões. São rimas que partem de um imaginário comum, mas se tornam íntimas pela ligação com as personagens.
Talvez esse aspecto beire o genérico, especialmente pelo envolvimento da A24. Certos usos lembram vícios de outros projetos da produtora, caso do aclamado "Aftersun", que navega pelas memórias de um pai e sua filha.
Parece existir a obrigação de que cada quadro e decisão dramática se submetam às soluções estéticas. Isso diminui o lirismo de "Todas as estradas de terra têm gosto de sal", que poderia abranger uma pureza ainda maior, ainda que a fé em sua linguagem seja de se admirar. (Davi Galantier)
“TODAS AS ESTRADAS DE TERRA TÊM GOSTO DE SAL”
(EUA, 2024, 92 min.) Direção: Raven Jackson. Com Charleen McClure, Moses Ingram, Reginald Helms Jr. Classificação: 12 anos. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 14h30 e 18h30).