Ex-integrante do grupo guerrilheiro Tupamaro, José “Pepe” Mujica foi mantido preso pelo Exército por 12 anos (1973 a 1985), durante a ditadura no Uruguai – boa parte desse tempo, em confinamento solitário. Em 2010, Mujica, eleito pelo voto popular, foi empossado presidente do país, que governou até 2015.
Nesse período, implementou medidas progressistas, que ganharam o centro de debates globais. Suas ideias e seu estilo de vida austero fizeram dele uma das figuras mais respeitadas e influentes da esquerda no mundo.
É na presidência de Mujica que se concentra o documentário “Os sonhos de Pepe”, de Pablo Trobo, que estreia nesta quinta (5/12). O filme mostra as viagens do mandatário, sua participação em assembleias mundo afora, os encontros com autoridades e com diferentes povos ao redor do planeta, mas, sobretudo, serve de palanque e vitrine para seu discurso, suas ideias e sua filosofia de vida.
Logo de início, “Os sonhos de Pepe” revela ao espectador a vida simples de Mujica, algo de que não abriu mão mesmo enquanto ocupava a Presidência do Uruguai. Ele ia trabalhar dirigindo seu Fusca azul-celeste 1987; recusou ocupar a residência oficial no Palácio de Suárez para continuar morando na chácara modesta em que sempre viveu, em uma área rural nos arredores de Montevidéu, onde plantava flores para comercializar; e doava 90% de seu salário para instituições de caridade. É essa figura quase irreal, livre de ressentimentos pelo que passou no cárcere que o filme busca amplificar.
Apenas no início do documentário Mujica se dirige para a câmera de Trobo. De resto, ao longo de pouco mais de 80 minutos, o vemos falando para diferentes plateias – em uma assembleia da ONU ou para estudantes no Japão. Frequentemente, sua voz também surge em off, enquanto são mostradas imagens de suas andanças pelo mundo ou de sua vida doméstica. O que ele diz e o que ele faz – e como faz – é o que importa ao diretor.
Campanha presidencial
Trobo conheceu Mujica trabalhando como cinegrafista em sua campanha presidencial. A proximidade e o tempo de convivência possibilitaram que ele mergulhasse na intimidade de Mujica – um personagem que, como o filme aponta, renunciou a todos os símbolos de poder. Em uma entrevista concedida em 2018, ele afirma que o mais comum é ver políticos que, assim que começam a subir a escada [dos palácios presidenciais], se tornam reis.
“Muita gente gosta de muito dinheiro. Essas pessoas não deveriam entrar na política. Não sei como funciona, mas o que sei é que repúblicas vieram a este mundo para assegurar que ninguém tenha mais valor do que qualquer outro. A pompa do posto é como o que sobrou de um passado feudal: você precisa de um palácio, tapete vermelho, muita gente atrás de você dizendo ‘Sim, senhor’. Acho tudo isso horrível”, declarou.
Esse tema é retomado com ênfase em “Os sonhos de Pepe”, quando, por exemplo, ele diz que “os republicanos que governam deveriam entender que é preciso viver com os valores da maioria, e não da minoria”. Em grande medida, o filme de Trobo é uma ode à utopia, encarnada nos ideais de Mujica. Isso está não apenas no plano do discurso, mas também das imagens. Volta e meia, registros documentais são contaminados por efeitos especiais que dão uma dimensão onírica ao que se vê.
O título da obra ganha, nesse sentido, uma conotação algo melancólica, como que a dizer que esse lugar e esse estado de coisas desejado por Mujica, em que a vida não seja orientada pelo consumo, são inalcançáveis, simplesmente a realidade não é essa. Ele deixa claro, em diversos momentos, que, a seu ver, o capitalismo é a ruína da humanidade. “A política ficou limitada à economia e ao mercado”, lamenta. O ser humano, em suma, consome e desperdiça.
“Astro pop”
O filme, por outro lado, dá um alento ao mostrar que muita gente compartilha desse sonho. Nas aparições públicas de Mujica ou em suas conferências, a reação das pessoas diante de sua presença se assemelha à de fãs diante de um astro pop. Ao mesmo tempo, há algo de extremamente fraternal e próximo nessa relação de Mujica com seus admiradores. Como um velho amigo com muita experiência acumulada para transmitir, ele acolhe, abraça, tira fotos.
“A alma de um velho é uma mochila cheia de memórias”, diz, em determinada passagem. Em outra, afirma que “quando lutamos pelo meio ambiente, o primeiro elemento do meio ambiente se chama felicidade humana”. Ele também não se furta a falar de si, garantindo que não vive para cobrar contas ou reverberar memórias. Em outro momento, diz que trabalha com a terra porque gosta. “Tenho alma de camponês e me divirto com a terra.” E conclui: “Acima de tudo, não traí o menino dentro de mim”.
Outros filmes
“Os sonhos de Pepe” é um complemento notável ao longa de ficção “Uma noite de 12 anos” (2018), do também uruguaio Alvaro Brechner, que aborda o suplício de Mujica (Antonio de la Torre) e de seus companheiros Mauricio Rosencof (Chino Darín) e Eleuterio Fernández Huidobro (Alfonso Tort), presos na mesma época, em ações distintas, durante os 12 anos de encarceramento, submetidos a torturas.
É também sobre a biografia de Mujica o documentário “El Pepe, uma vida suprema” (2018), do cineasta sérvio Emir Kusturica.
“OS SONHOS DE PEPE”
(Uruguai, 2024, 86 min.). Direção: Pablo Trobo. Documentário. Estreia nesta quinta-feira (5/12), no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 19h).