Leopoldo Pacheco, no  papel do herdeiro, divide a cena com Rogério Brito, Carol Gonzalez e Marat Descartes -  (crédito: Heloisa Bortz/Divulgação)

Leopoldo Pacheco, no papel do herdeiro, divide a cena com Rogério Brito, Carol Gonzalez e Marat Descartes

crédito: Heloisa Bortz/Divulgação

 

É opinião unânime de quem trabalha com teatro: lidar com direitos autorais de peças internacionais muitas vezes é sinônimo de enfrentar desafios que requerem muita habilidade. Custos elevados, burocracia estrangeira, cláusulas que proíbem adaptações culturais…

 

 

São vários os percalços com que os encenadores têm de lidar. O problema maior, contudo, é quando a montagem é liberada e, de última hora, o detentor dos direitos volta atrás.

 


Foi o que ocorreu com o ator, diretor e dramaturgo Kiko Marques. Há alguns anos, ele ensaiava uma peça – tinha até conseguido patrocínio – quando recebeu a notícia de que o detentor dos direitos havia cancelado a autorização para a montagem.

 

Inspirado por essa experiência, escreveu “Sangue”, espetáculo que estreia em Belo Horizonte nesta sexta-feira (6/12) e cumpre temporada até 30 de dezembro no CCBB-BH.


Metalinguagem

“Sangue” reflete sobre os desafios do teatro por meio de uma abordagem metalinguística. Na trama, Carin (Carol Gonzalez) e Cesar Santo (Rogério Brito) estão ensaiando o espetáculo “Sangue”, de um grande dramaturgo francês já falecido chamado Aponti.

 


Os dois, no entanto, são informados de que Victor (Leopoldo Pacheco), o irmão do dramaturgo falecido e detentor dos direitos da obra, cancelou a autorização para a montagem. Sem alternativas, Carin recorre ao ex-marido Leon (Marat Descartes), amigo íntimo de Victor, na esperança de reverter a situação.

 


“É um texto metalinguístico. Estamos falando sobre situações que todo mundo que trabalha com teatro passa ou já passou”, afirma Leopoldo. “A gente passa por muitos contratempos. E o Kiko usa isso como ponto de partida para construir uma narrativa que vai culminar em questões como colonialismo e violência contra a mulher”, diz.

 


O personagem de Victor é uma alegoria do neocolonialismo. Ele é um estrangeiro que detém os direitos de uma obra valiosa, não por mérito próprio, mas por herança. A metáfora remete à apropriação de artefatos históricos e artísticos por países europeus durante o colonialismo. Assim como esses países, Victor jamais teria acesso a algo de tão alto valor cultural em condições normais.

 


Ele não tem experiência no teatro, mas, ao herdar os direitos da obra, começa a nutrir o desejo de dirigir a peça de Carin e Cesar. “Victor tem certa prepotência e ingenuidade em relação ao trabalho no teatro. Não entende que para ser considerado um grande autor ou um diretor renomado precisa ter muito background, todo um trabalho por trás”, comenta Leopoldo.

 


Na ânsia por querer assumir as rédeas da peça, Victor entende o poder que tem nas mãos, já que a montagem depende unicamente dele. Essa percepção faz com que ele dê início a um jogo de poder kafkiano, que envolve conflitos intensos e até a tentativa de dominação do ser humano por outro.

 


Dominação intelectual

“É uma tentativa de dominação intelectual, uma forma de supremacia”, avisa Kiko, que, além de assinar a dramaturgia, é o diretor do espetáculo. “Isso se mistura a elementos do machismo, no caso de Carin recorrer ao ex-marido.”

 


A atitude dela é a de uma artista aficionada pela arte. “Ela vê um potencial imenso naquele texto e quer montá-lo de todo jeito. Por isso, quando Victor veta a montagem, ela não se fia aos escrúpulos e faz o que estiver ao seu alcance, mesmo que isso a deixe de certo modo vulnerável, dependendo de favores do ex-marido”, afirma o dramaturgo e diretor.

 


Segundo Leopoldo, os personagens são “pessoas comuns, daquelas que encontramos na rua”. Um executivo, um diretor de teatro, uma atriz satisfeita com a profissão e um ator que procura encontrar o próprio caminho em meio às hostilidades do meio em que vive.

 


Leopoldo se refere a Cesar Santo. E não à toa quem o interpreta é um homem negro (Rogério Bispo). O personagem tem uma carga dramática muito forte. É impactado pela origem desfavorecida, preso injustamente e, quando sai da cadeia, é chamado para ser consultor de um filme sobre a prisão. No entanto, entra para o elenco e vira um fenômeno da noite para o dia, o que faz com que ele protagonize uma nova saga, tendo que lidar com o sucesso repentino.

 


“O que todos nós procuramos fazer foi dar humanidade aos personagens, sem qualquer juízo de valor. O julgamento deve ficar por conta dos críticos e de quem for assistir à peça”, diz Leopoldo.

 


“SANGUE”
Texto e direção: Kiko Marques. Com Leopoldo Pacheco, Carol Gonzalez, Rogério Brito e Marat Descartes. Estreia nesta sexta-feira (6/12), no CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Sessões de sexta a segunda-feira, às 20h. Ingressos à venda a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), na bilheteria do teatro e pelo site. Até 30 de dezembro. Mais informações: (31) 3431-9400.