Como adaptar para a televisão uma obra cujos personagens, quase um patrimônio de um país, têm os rostos que cada leitor lhes atribuiu ao longo de quase 60 anos?
Esse desafio — reconhecido certa vez pelo próprio autor da obra, o escritor colombiano Gabriel García Márquez — foi o principal obstáculo enfrentado pelos produtores da adaptação televisiva de Cem Anos de Solidão, uma das obras-primas do espanhol moderno.
Nesta quarta-feira (11/12), após vários anos de trabalho, os telespectadores — muitos deles leitores do romance — poderão conferir a versão produzida pela gigante do streaming Netflix.
A adaptação para a televisão foi uma produção cara, que incluiu a criação de uma versão física do mítico povoado de Macondo, construída no sul da Colômbia.
A produção também envolveu um complexo processo de criação para a adaptação de uma história que faz parte do inconsciente coletivo não apenas dos colombianos, mas de leitores de toda a América Latina (o livro já vendeu cerca de um milhão de exemplares somente nesta região).
Esse era o receio do próprio García Márquez, que durante mais de 50 anos se negou a ceder os direitos da obra por uma razão simples.
"Prefiro que meus leitores continuem imaginando os meus personagens", afirmou ele em uma entrevista para o rádio em 1991.
Contudo, após sua morte em 2014, essa visão mudou.
A ideia de García Márquez parecia aplicar-se exclusivamente a Cem Anos de Solidão e à saga dos Buendía, já que muitas de suas outras obras foram efetivamente adaptadas para o cinema durante sua vida — como O Coronel Não Tem Quem Escreva (1999), Memória de Minhas Putas Tristes (2011), O Amor nos Tempos do Cólera (2007) e os contos Neste Povo Não Há Ladrões e A Viúva de Montiel, entre outros.
"Nosso esforço foi mostrar uma família muito real, colombiana, à qual acontecem coisas mágicas. E, ao redor disso, mergulhar os telespectadores em um universo onde se sentissem em Macondo", disse Laura Mora, uma das diretoras da série, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Assim, a partir desta quarta-feira, estarão disponíveis online oito episódios com 1h de duração cada, onde a descendência dos Buendía fará sua estreia na televisão. Uma segunda temporada, com mais oito episódios, já está confirmada.
Um processo de adaptação
Em abril de 2014, o mundo soube da morte de Gabriel García Márquez, no México. Iniciava-se, então, uma nova fase para entender o que aconteceria com seu legado.
Foi então que, em 2018, uma grande notícia foi divulgada: dois filhos do escritor, Rodrigo e Gonzalo García Barcha, anunciaram que os direitos de sua obra-prima, Cem Anos de Solidão, haviam sido vendidos para a Netflix, que faria uma adaptação.
Em 1987, García Márquez havia sugerido que, embora não visse viabilidade em adaptar o romance para o cinema, acreditava ser possível produzir uma série com vários capítulos.
"O primeiro ponto que tivemos claro no processo de adaptação é que a literatura e a televisão são dois idiomas muito distintos e que tentar fazer algo melhor do que já estava na novela seria um pecado de arrogância", afirma Mora.
"E houve grandes desafios. Por exemplo, no romance há poucos diálogos, e tivemos que fazer um grande trabalho para entender como esses personagens falavam, como se comunicavam entre si."
Assim, foram estabelecidas as demandas essenciais — uma delas, a de que a produção teria que ser colombiana e filmada na Colômbia.
Segundo a mídia local, a Netflix investiu cerca de US$ 50 milhões (R$ 298 milhões) para iniciar o projeto, que incluiu a construção de uma Macondo.
Além disso, foi realizada uma pesquisa detalhada sobre os costumes e tradições da Colômbia entre o século 19 e início do século 20, buscando a recriação o mais fiel possível à realidade que permeia o livro de García Márquez.
Mas o principal desafio ainda rondava os diretores e produtores: os rostos dos personagens principais. Como seria a aparência do coronel Aureliano Buendía? Como Úrsula Iguarán se apresentaria?
"É muito difícil competir com a nossa própria imaginação, com os Buendía que cada um tem na cabeça. Então, o que fizemos foi realizar um trabalho muito rigoroso no processo de seleção do elenco, e também percorremos toda a Colômbia em busca de novos talentos", afirma Mora.
Após vários meses de busca, os papéis principais ficaram nas mãos de uma combinação de atores experientes e novas revelações.
O coronel Aureliano Buendía, em sua fase adulta, é interpretado por Claudio Cataño, de Bogotá. Marleyda Soto Ríos, de Cali, foi escalada como Úrsula Iguarán, enquanto Diego Vásquez, de Ibagué, assumiu o papel do patriarca José Arcadio Buendía.
"Acredito que essa aposta que fizemos, de respeitar o romance e ser justos, nos permitiu encontrar atores que realmente deram vida, materialidade e alma a esses personagens. E acho que esse é um dos grandes méritos da série", diz Mora.
O realismo mágico
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Mas não se trata apenas de adaptar a saga de uma família colombiana (ou latino-americana), mas também de refletir que o livro está repleto de eventos especiais, como a levitação do padre ou a chuva de flores amarelas quando José Arcadio Buendía morre.
"A escolha foi não usar os artifícios de efeitos especiais, mas fazer de uma maneira mais material, mais real. Por isso, a levitação do padre foi feita com a ajuda de cabos — que depois removemos com computador — para que ficasse mais próxima do que é narrado no livro", explica a diretora.
"A chuva de flores também foi feita com flores de verdade e outras de plástico. A intenção foi ser o mais artesanal possível na hora de recriar essas cenas", acrescenta.
Após mais de dois anos de produção — que continuam com a gravação da segunda temporada — Macondo e os Buendía ganharam vida. E as reações não tardaram a aparecer.
O diretor de cinema Rodrigo García, um dos filhos de García Márquez e produtor executivo da série, afirmou que "Gabo estaria assistindo à série, sem dúvida".
"É uma experiência diferente e deve ser apreciada pelo que é, sem comparar constantemente com o livro. Para mim, são projetos-irmãos que se complementam", disse ele durante a estreia da série na última segunda-feira (09/12), em Bogotá.
Alguns críticos receberam de forma semelhante a proposta dos primeiros oito episódios da produção da Netflix.
"Nos deparamos com as imagens que estiveram na cabeça dos leitores por mais de meio século: a chuva de flores amarelas que anuncia a morte de José Arcadio e o fio de sangue que serpenteia pelo vilarejo até chegar aos pés de Úrsula para avisá-la de que seu filho está morto são surpreendentemente belos", escreveu o crítico de cinema Jack Seale no jornal britânico The Guardian.
"Há maravilhas suficientemente distorcidas nesta série para valer a pena revisitar Macondo", acrescentou.
No entanto, outros não foram tão entusiastas com a adaptação, como a escritora colombiana Carolina Sanín.
"Assistir à série, se não se leu o livro, sim, atrofia a possibilidade de depois ler o livro de forma profunda, rica e complexa. A série estreita, diminui, determina o livro. Então, tampouco é verdade que 'aproxima' alguém da obra. Ela afasta", escreveu na rede social X.