A escritora argentina Beatriz Sarlo morreu em Buenos Aires, aos 82 anos, na última terça; na imagem ao lado, ela posou para o Estado de Minas, no fHist, em Diamantina, em 2013 -  (crédito: Leandro Couri - 21/9/2013 - EM/D.A.PRESS)

A escritora argentina Beatriz Sarlo morreu em Buenos Aires, aos 82 anos, na última terça; na imagem ao lado, ela posou para o Estado de Minas, no fHist, em Diamantina, em 2013

crédito: Leandro Couri - 21/9/2013 - EM/D.A.PRESS

Uma anedota simbólica envolvendo um mineiro e um português teve contornos de um conto de Jorge Luis Borges na despedida da escritora Beatriz Sarlo (1942-2024), na última quinta-feira (19/12), em Buenos Aires.

 

No velório daquela que é considerada uma das mais importantes intelectuais argentinas das últimas décadas, morta aos 82 anos em decorrência de um AVC, a leitura de um poema equivocadamente atribuído a Fernando Pessoa acertou em cheio a obra de Sarlo, permeada por reflexões em torno do papel da memória coletiva e da autoria na literatura.

 

 

Os versos, na verdade, são um excerto do romance “O encontro marcado” (1956), ambientado em Belo Horizonte e que tem como material as memórias em tom ficcional de outro Fernando, o Sabino (1923-2024).

 

“A certeza de que estamos começando/A certeza de que é preciso continuar/A certeza de que podemos ser interrompidos/antes de terminar”, foram as palavras proferidas durante o funeral de Sarlo, em espanhol, citando como autor o poeta português.

 

O texto foi compartilhado na rede social X pelo escritor argentino Martín Felipe Castagnet. Mas foi outro escritor, desta vez o mato-grossense Joca Reiners Terron, que matou a charada: era um trecho retirado da obra-prima de Sabino.

 

Eduardo Marciano

 

 

Terron achou algo estranho na citação atribuída a Pessoa, pois, segundo ele, o texto não combinava com o estilo de nenhum dos heterônimos do português. Uma busca rápida na internet confirmou que se tratava de uma frase do personagem Eduardo Marciano, de Fernando Sabino.

 

O autor de “A morte e o meteoro” compartilhou a descoberta, também no X. “Os críticos literários, aparentemente, têm material para se divertirem até mesmo no pós-vida”, brincou Terron, em entrevista ao Estado de Minas.

 

O caso remete a uma das principais preocupações da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, que cuida da preservação do legado do poeta português – e de Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, alguns dos heterônimos dele. A instituição tenta, há anos e com muitos insucessos, interromper a avalanche de textos equivocadamente atribuídos a Pessoa e que circulam como pequenas pílulas literárias desde o advento da internet.

 

 

Segundo Ricardo Belo de Morais, técnico da biblioteca da Casa Fernando Pessoa, o texto citado no funeral de Sarlo que transformou a prosa de Sabino em versos quebrados é um dos mais recorrentes e datado antes mesmo das redes sociais.

 

“Circula em cadeias de correio eletrônico desde pelo menos 1990, sendo reproduzida na imprensa e em alguns livros desde antes disso”, explica. Segundo ele, são dezenas de “vírus” literários pessoanos, compartilhados por leitores bem-intencionados, mas pouco familiarizados com a obra do português. “Muitas vezes porcarias banais do pior da autoajuda, como se fossem o melhor filé mignon do mundo”, diz.

 

Engano recorrente

O mesmo texto lido no funeral de Beatriz Sarlo já apareceu em redes sociais de celebridades brasileiras, indicando como autor o poeta português. “Muita gente usou esse texto durante a pandemia, mas ele é do ‘Encontro marcado’”, afirma Bernardo Sabino, filho do romancista mineiro.

 

Em janeiro, um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu 2024 como o Ano Nacional Fernando Sabino. O escritor também ganhou, na semana passada, um memorial na capital mineira, com uma exposição permanente e um centro de pesquisa. Segundo Bernardo, o próprio Sabino tem também seus apócrifos circulando na internet.

 

A anedota da confusão entre escritores no funeral dialoga diretamente com o trabalho de Beatriz Sarlo, explica Davis Diniz, professor de literatura da UFMG e doutor pela Universidade de Buenos Aires (UBA), onde a ensaísta argentina lecionava. Um dos principais objetos de estudo de Sarlo é o autor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), tema do livro “Um escritor na periferia”, publicado por ela em 2008.

 

 

 

Era em torno de apócrifos que boa parte do mundo “borgeano” orbitava, com resenhas de livros inexistentes – títulos que enganavam até mesmo o amigo Adolfo Bioy Casares (1914-1999), que os encomendava inutilmente nas livrarias de Buenos Aires. Em 2016, o próprio Borges foi alvo de frases enganosamente atribuídas a ele e que foram impressas pelo governo argentino em cartazes afixados no metrô da capital portenha, lembra Diniz.

 

 

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É aí que aparece a leitura de Sarlo sobre a memória, como algo que é coletivamente ressignificado no presente. Segundo o professor da UFMG, no caso de Sabino – autor pouco conhecido na Argentina –, ele toma outras dimensões, quando atribuído ao cânone europeu de Pessoa. O caso também suscita debates num mundo soterrado pela avalanche de informação, em que a autora de “Tempo passado” procurava formas de inovar e trazer debates arejados em meio à saturação, atuando também como articulista na mídia.

 

“Esse episódio tem algo de muito ‘borgeano’ pelo fato de dar ao Sabino um lastro que é da obra do Fernando Pessoa”, afirma Davis Diniz. “Esses equívocos talvez sejam modos de dinamizar a repetição eterna do cânone literário”, diz. Resta saber se a anedota vai servir para enfim levar a obra de Sabino ao país vizinho: uma rápida busca no site da Biblioteca Nacional da Argentina retorna apenas três livros do escritor mineiro no acervo (“Encontro marcado”, “Menino no espelho” e “O homem nu”) – nenhum deles em espanhol.

 

Pós-escrito

Um dia após a publicação desta matéria, no domingo (22/12), a filósofa argentina Laura Klein, responsável por ter lido o poema apócrifo durante o funeral de Sarlo, respondeu a um e-mail enviado durante a apuração da reportagem sobre o caso. Ela diz não saber precisar como o poema de Sabino, assinado erroneamente como de Pessoa, chegou até ela. "Foi por conta deste episódio, e por certa curiosidade acrescida de responsabilidade, que fui procurá-lo na web. Para minha surpresa, descobri que nenhuma das múltiplas vezes em que ele aparece em diferentes sites, ele deixa de ser atribuído a Pessoa", explica Laura.

 

Para a filósofa, no entanto, o fato de o apócrifo ter se transformado em uma "polêmica" seria, para Sarlo, uma homenagem "que ela teria adorado". "Poderia até ter sido uma nota de rodapé em alguma de suas aulas", acrescenta. Laura Klein lembra que a própria literatura argentina foi inaugurada justamente com um apócrifo, na obra "Civilização e Barbárie", de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888). A primeira página do livro contém a frase "On ne tue point les idées" ("as ideias não se matam"), atribuída pelo autor argentino ao francês Hippolyte Fortoul (1811-1856).

 

Depois de diversas discussões sobre a origem do trecho, foi outro escritor argentino, Ricardo Piglia (1941-2017), quem afirmou se tratar de uma versão livre de uma frase de Diderot, explica a filósofa. "Se há algo que Sarmiento compreendeu, menos preocupado com a verdade do que com o poder da verdade, é que muitas vezes são os erros contidos em um texto que causam sua popularidade", diz.


"De qualquer forma, como um desfecho cíclico deste imbróglio, diria que o modo como Beatriz encarava sua vida pública está mais próximo do que essa primeira estrofe de Sabino anuncia do que da poética onírica de Pessoa. Talvez este seja – como o título do livro de Sabino ao qual o poema pertence – um encontro marcado", finalizou Laura Klein.