FOLHAPRESS
Quase 25 anos depois de causar alvoroço em Taperoá com a ligeireza que ludibriou padres e coronéis, João Grilo volta a ser protagonista do sertão paraibano em “O Auto da Compadecida 2”, continuação do filme inspirado na obra de Ariano Suassuna que se consolidou como um marco para o cinema nacional.
Na nova trama, Grilo volta a Taperoá depois de muito tempo e reencontra Chicó, que espalhou entre os habitantes a história épica do amigo, salvo por um milagre anos atrás, quando ressuscitou após levar um tiro de um cangaceiro.
Para o povo, Grilo é uma celebridade eleita por Nossa Senhora Aparecida, que, na pele da majestosa Fernanda Montenegro, o defendeu diante do diabo no primeiro filme e permitiu que ele retornasse à Terra para se provar uma boa pessoa. Agora, Taís Araujo vive a Padroeira do Brasil.
A história original é uma peça de Ariano Suassuna, escrita com elementos da literatura de cordel. O drama cômico revolucionou o teatro ao levar aos palcos a cultura popular do país, com todas suas tradições religiosas. A adaptação para o cinema, em 2000, levou mais de 2 milhões de pessoas às salas de exibição e sagrou Guel Arraes como cineasta.
- Diversidade racial sempre marcou a obra de Ariano Suassuna
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Fazer a continuação, que estreia nesta quinta-feira (26/12) em todo o país, envolvia altas expectativas. Desta vez, o diretor Guel Arraes não contou com o texto de Ariano Suassuna e precisou se policiar para evitar uma cópia do primeiro roteiro.
O diretor conta que a coragem veio quando se lembrou daquilo que poderia adicionar à trama, com elementos do próprio Suassuna e de farsas medievais estudadas para o primeiro filme.
“Os golpes de João Grilo tinham que ser maiores, mais ousados. Desta vez, tem mais emoção, porque com Ariano a emoção é só no céu”, diz o diretor.
Chicó, por exemplo, espera pelo retorno de sua amada Rosinha (Virgínia Cavendish), mas precisa resistir à sedução da voluptuosa Clarabela (Fabíula Nascimento).
Diferentemente do original, em que as falcatruas de Grilo eram quase como pequenas narrativas separadas que se encavalam, surpreendendo o espectador de forma hilária, o novo filme tem um conflito central que serve de fio condutor para o enredo.
O empresário Arlindo (Eduardo Sterblitch) e o coronel Ernani (Humberto Martins) disputam as eleições para a Prefeitura de Taperoá logo na volta de Grilo, que acaba se envolvendo no conflito e arrasta Chicó com ele.
O tempo, claro, passou para Matheus Nachtergaele e Selton Mello, que estavam ainda no começo da carreira quando eternizaram Grilo e Chicó, respectivamente, nas telonas. Mello fazia telenovelas dramáticas, enquanto Nachtergaele vivia tragédias no teatro.
“Fomos destinados para a alegria através de ‘O Auto da Compadecida’”, diz Nachtergaele. “Ajudou muito a gente. Somos mais solitários e melancólicos na vida”, brinca Selton Mello, em cartaz atualmente também no filme “Ainda estou aqui”. Nesta aposta do Brasil para o Oscar, o ator mineiro interpreta o ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura militar nos chamados Anos de Chumbo.
Em certo momento, Chicó junta dinheiro para comprar um rádio – o filme se passa no tempo em que o aparelho era novidade. A ambição simples do personagem lembra o desejo do protagonista de Selton Mello em “O palhaço” (2011), obcecado por ventiladores.
No intervalo entre “O Auto da Compadecida” e a sua continuação, Nachtergale também foi diretor, em “A festa da menina morta” (2008), além de ter feito dezenas de filmes e novelas e atuado em “Cidade de Deus”, outro marco para o cinema nacional.
“Eles são os mesmos e novos artistas ao mesmo tempo. Mas esses personagens (Grilo e Chicó) se apoderaram deles”, diz Guel Arraes, para quem os protagonistas são heróis e responsáveis pela catarse do primeiro filme.
“João Grilo usa a sabedoria para sobreviver, um herói que luta por sua vida no dia a dia. O brasileiro se identifica com isso”, diz o cineasta.
Sertão da alegria
Em 2000, o filme de Arraes inovou na maneira como o Nordeste era retratado no audiovisual, produzido especialmente no Sudeste. O sertão não era só lugar de seca e sofrimento, mas também de alegria, esperteza e comédia.
“O nordestino é muito engraçado, tanto que comediantes como Chico Anysio e Renato Aragão são de lá, mas isso não aparecia tanto no cinema. Eu queria fazer um Nordeste que falava das dificuldades do dia a dia com humor, um pouco como fizeram as chanchadas”, comenta Guel Arraes.
“O AUTO DA COMPADECIDA 2”
Brasil, 2024, 114min. Direção: Guel Arraes e Flavia Lacerda. Roteiro: Guel Arraes, João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado. Com Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Fabíula Nascimento, Eduardo Sterblitch, Humberto Martins, Taís Araújo, Enrique Diaz e Luis Miranda. Estreia nesta quinta-feira (26/12) nas redes Cinemark, Cinesercla e Cineart, além das salas do UNA Cine Belas Artes e do Centro Cultural Unimed-BH Minas.