Figura central da geração beat, William S. Burroughs (1914-1997) estreou na literatura em 1953 com “Junky”, livro que acompanha seu alter ego, o viciado William Lee. Criador e criatura viviam na Cidade do México, também o local onde o escritor matou acidentalmente sua mulher, Joan Vollmer (1923-1951). O romance “Queer” traz o mesmo personagem como figura central, mas a obra só veio a público em 1985.

 




Filmar a narrativa autobiográfica fragmentada era um desejo do cineasta italiano Luca Guadagnino havia muito. Tanto que fica claro, já a partir da escolha da canção dos créditos iniciais (“All apologies”, em gravação de Sinéad O’Connor), que “Queer”, que chega nesta quinta (12/12) aos cinemas, é um filme anacrônico. O fato de ser fora de seu tempo não configura um defeito, muito pelo contrário.

 


“Em ‘Junky’, o protagonista Lee passa por integrado e autocontido, seguro de si onde quer que vá. Em ‘Queer’ ele é desintegrado, desesperado pela necessidade de contato, completamente inseguro de si e de seu futuro”, escreveu o próprio Burroughs no texto introdutório que fez, a duras penas, para a publicação do romance nos anos 1980.

 


Segredo

“A razão para tal relutância se tornou clara: o livro é motivado e formado por um evento que nunca é mencionado, e que de fato é cuidadosamente evitado”, completou o autor, referindo-se à morte de Joan. Burroughs era homossexual, mas mantinha uma relação platônica com a mulher. Foi a morte dela que teria suscitado no autor a necessidade da escrita.

 


Que o público introduzido ao cinema de Guadagnino por meio do sucesso “Me chame pelo seu nome” (2017, Oscar de roteiro adaptado) não se engane. Ainda que o mote das duas adaptações cinematográficas seja semelhante – a relação de um homem mais velho com um jovem –, as narrativas não poderiam ser mais distintas.

 


Entre o fim da década de 1940 e o início da de 50, Burroughs viveu na Cidade do México, “um lugar barato para se viver, com uma grande colônia de estrangeiros, fabulosos prostíbulos e restaurantes”, ele escreveu. “Queer” foi inspirado no relacionamento do autor, papa da contracultura, com Adelbert Lewis Marker que, depois de deixar a Marinha americana, circulava pela Cidade do México.

 


Na ficção, William Lee é um expatriado americano alcoólatra e viciado em heroína que passa seus dias à caça, de bar em bar. Indicado com muita propriedade ao Globo de Ouro, Daniel Craig se desveste do estrelato conseguido com os serviços prestados à franquia 007 para interpretar o personagem.

 


Drinks baratos

Ainda bonito e em forma, mas suado e amarfanhado o tempo inteiro, Lee está definhando naquele cenário. Entre drinks baratos e tiradas espirituosas com seu melhor amigo, Joe Guidry (Jason Schwartzman, um bobo da corte adorável), ele se depara com a figura de Eugene Allerton (Drew Starkey, da série “Outer Banks”).

 


A paixão é imediata – da parte de Lee, diga-se, que passa o trecho inicial da narrativa tentando decifrar Eugene. O jovem não se importa em passar horas bebendo com ele e ouvindo suas histórias. Mas será que ele é gay? Ao mesmo tempo em que Eugene lança olhares inequívocos a Lee, é capaz de ignorá-lo no bar quando está na companhia de Mary (Andra Ursuta), uma mulher com quem pode estar ou não envolvido.

 


Guadagnino não tem pressa ao filmar, assim como Eugene não tem pressa alguma em ir para a cama com Lee. Quando o relacionamento entre os dois homens finalmente chega às vias de fato, a relação é filmada com muita intensidade (ainda que não haja nenhuma cena realmente explícita). Mesmo que tenha ido para a cama com Lee, Eugene não fica disponível para ele.

 


O homem mais velho se torna meloso, grudento e faz uma proposta para o mais jovem. Viajar para a América do Sul, em busca da yage (ayahuasca). Lee banca a viagem de Eugene, que deverá ser “legal” com ele (o que não é difícil de entender) duas vezes por semana.

 


Como que referendando que “Queer” nasceu de um livro, Guadagnino divide o longa em quatro capítulos. Não há um enredo propriamente, mas uma série de incidentes que criam a história. As escolhas estilísticas do diretor marcam cada passagem.

 


Lee e Eugene caminham por uma Cidade do México com aparência de estúdio ao som de Nirvana, New Order e Prince. Desbravam a selva também criada em estúdio para se encontrar com uma química alucinada (Lesley Manville, irreconhecível), que vai lhes fornecer a famigerada planta.

 


Os dois homens se encontram e se desencontram na droga, e a narrativa vai perdendo, gradativamente, a contenção. Qualquer coisa diferente disto não faria sentido, afinal, é Burroughs o autor da história.

 


Participação de Caetano

“Queer” é encerrado com uma sequência agridoce, ao som de Caetano Veloso. Autor de trilhas sonoras de vários filmes de Luca Guadagnino (incluindo “Rivais”, longa que o cineasta também lançou neste ano), Trent Reznor e seu parceiro Atticus Ross, do Nine Inch Nails, compuseram as 16 músicas originais do novo filme.

 

 

“Vaster than empires”, a última canção do longa, foi interpretada por Caetano. Os versos foram tirados do último registro do diário de Burroughs, escrito três dias antes de sua morte.


QUEER”
(Itália/EUA, 2024, 136min.). Direção: Luca Guadagnino, com Daniel Craig, Drew Starkey e Lesley Manville). O filme estreia nesta quinta-feira (12/12), no Ponteio 2 (16h, exceto quarta; e 18h20, somente quarta), no Ponteio 4 (21h, exceto quarta) e no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 20h30).

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